terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Islã: Seu significado, doutrina, vida religiosa e teologia - PARTE 3/3

Por Carlos Chagas

Atenção: Este artigo é uma trascrição literal de um trecho do livro chamado "O livro das Religiões" de Gaarder, Notaker e Hellern exceto pelas figuras. Os méritos são dos autores.

Esta é uma continuação da 2ª Parte (para lê-la clique aqui)

Relações humanas — ética e política

Tradicionalmente, no islã não há distinção entre a religião e a política, tampouco entre a fé e a moral. Todas as obrigações religiosas, morais e sociais do homem estão estabelecidas na sagrada lei  muçulmana, a xariá.

Xariá significa "caminho para o oásis", ou seja, o caminho correto para a conduta humana, que foi mostrado por Deus ao homem. A lei sagrada se expressa sobretudo no Corão, que é muito mais que um texto religioso. Trata-se de um livro de leis que contém instruções fixas e rígidas sobre o governo da sociedade, a economia, o casamento, a moral, o status da mulher etc.

Quando o Corão não dá instruções definitivas, os muçulmanos se voltam para a suna. Eles estudam os exemplos dados por Maomé e pelos califas. Relatos sobre a vida de Maomé e suas pregações foram escritos em coletâneas chamadas hadith, durante os primeiros séculos após a morte do profeta.

Tanto o Corão como as narrativas hadith se referem a um tipo de sociedade que hoje em dia praticamente não existe mais. Portanto, interpretar e adaptar as regras da escritura e da tradição é uma tarefa considerável. Ela pode ser realizada segundo dois princípios diferentes, o da similaridade e o do consenso.

Princípio da similaridade ou analogia. Para solucionar um problema totalmente novo, encontra-se um exemplo semelhante (ou análogo) no Corão, ou um precedente, e se estuda a base para uma decisão.

Princípio do consenso. Diz-se que Maomé afirmou que os fiéis nunca poderiam concordar coletivamente acerca de algo que estivesse errado. Assim, uma decisão que os fiéis tomam em comum pode ser vista como lei por seus representantes, os especialistas legais. Um exemplo ocorreu quando os líderes religiosos resolveram proibir o café. A decisão foi recebida com protestos tão veementes pelas pessoas comuns que os líderes concordaram em anular a proibição.

O movimento xiita utiliza um terceiro princípio, relacionado com seus conceitos sobre a revelação. Os sunitas afirmam que a revelação vem apenas uma vez, em sua forma final. Porém, para os xiitas ela pode ser contínua, por intermédio de seus líderes, os imãs. Isso implica que é possível dar novas interpretações da lei, baseadas na "compreensão pessoal" do imã.

Tradição e reforma

Maomé e os primeiros califas eram tanto líderes políticos como religiosos. Tinham a capacidade de usar o Corão como guia em todas as áreas da vida social, sem muita dificuldade.

Em épocas mais recentes, os encontros com a cultura e a economia do Ocidente ocasionaram certas mudanças. No século XIX a Turquia lançou uma série de reformas legais destinadas a facilitar a cooperação com a Europa Ocidental e a dar mais segurança legal aos não-muçulmanos que residem dentro de suas fronteiras. O resultado foi a emergência de um sistema legal com dois níveis: a lei sagrada, que se aplica sobretudo aos assuntos particulares, e o direito público, que é secular.

Essa dualidade ficou ainda mais pronunciada em alguns dos novos Estados nacionais que foram surgindo, muitas vezes com líderes influenciados pelos ideais ocidentais.

Além do direito público, fundamentado em princípios legais gerais, muitos países possuem um direito privado, que é da competência de tribunais religiosos especiais. Ele se aplica particularmente aos assuntos de família e de herança. Ao mesmo tempo, há uma pressão cada vez maior para que os princípios islâmicos sejam a base do direito público, como, por exemplo, da justiça criminal. Em 1972 a Líbia introduziu uma lei de justiça criminal apoiada na xariá. Ela inclui, por exemplo, a proibição de servir e beber álcool. A punição para os ladrões é a amputação da mão direita.

No Paquistão e no Irã, os levantes políticos da década de 1970 intensificaram o domínio do islã sobre a vida social. Todavia, tornou-se óbvio, mesmo na Arábia Saudita, onde a xariá é universal, que é difícil ser totalmente coerente. Há diversas áreas, sobretudo a econômica, onde a xariá não é praticada.

A Turquia é uma exceção no mundo islâmico. Depois que o califa foi deposto, Mustafá Kemal "Ataturk" construiu com seu povo um Estado moderno em linhas ocidentais, onde o Estado e a religião
foram devidamente separados. Em 1926 a xariá foi substituída nesse país por um código civil que julga as pessoas segundo uma lei comum, independentemente de religião.

Economia

O Corão tem uma visão favorável da atividade econômica. Menciona em particular o comércio, que era a principal fonte de subsistência em Meca, cidade de trânsito na época de Maomé. O Corão não questiona o direito à propriedade privada, mas há arranjos especiais que impõem certas limitações à riqueza e à propriedade. A mais importante é a proibição dos juros, proibição que não é aplicada de modo uniforme, em particular na área das finanças internacionais. A obrigação religiosa de dar esmolas passou a ser, na prática, uma taxa ou um imposto sobre a propriedade.

Em vários trechos o Corão alerta que as riquezas se tornam uma tentação que afasta as pessoas de Deus. 

O pensamento social em que até certo ponto se baseia a idéia de caridade afirma que os ricos devem dar aos pobres. Os políticos de mentalidade reformista transformaram esse princípio numa política econômica de cunho socialista. Na maioria dos países árabes impera o mercado livre na economia.

As mulheres no islã

Duas citações do Corão demonstram como este pode ser usado para fundamentar duas visões bem diferentes do papel da mulher: "Os homens têm autoridade sobre as mulheres porque Deus os fez superiores a elas" (sura 4:31). "As mulheres devem, por justiça, ter direitos semelhantes àqueles exercidos contra elas" (sura 2:228).

O contraste no tratamento de homens e mulheres é visível numa série de áreas da vida social, sobretudo nas leis relativas ao casamento. Mas, como muitos estudiosos islâmicos já indicaram, há também uma série de leis que protegem as mulheres dentro do casamento. Quando o contrato de casamento é assinado, o marido paga um dote que permanece propriedade da esposa e não pode ser usado sem o consentimento dela.

A mulher só pode ter um marido, ao passo que os homens podem ter até quatro esposas. A poligamia para os homens não era rara no Oriente Médio na época de Maomé. A exigência deste de que um homem não deve tomar mais esposas do que pode sustentar teve muitos efeitos positivos em sua época. Hoje, a poligamia é proibida na Turquia e na Tunísia.

O divórcio é possível, mas apenas quando iniciado pelo marido, que é responsável pelo lado financeiro do casamento. Há regras e condições abrangentes destinadas a evitar o excesso de facilidades para o divórcio, o qual, segundo Maomé, é "a atividade legal menos preferida por Deus". O índice de divórcios nos países árabes é o mais alto do mundo.

O marido também tem o direito de punir fisicamente a esposa se ela for desobediente. "Quanto àquelas de quem temes desobediência, deves admoestá-las, enviá-las a uma cama separada e bater nelas", diz a sura 4.

Diferentemente da circuncisão para os homens, a excisão do clitóris (mutilação genital feminina) não é obrigatória para as mulheres; tampouco se menciona tal mutilação no Corão. Mesmo assim, ela é praticada com freqüência no Norte da África. Nos anos recentes, porém, vem encontrando forte oposição por causa de seus efeitos negativos sobre a vida sexual da mulher.

Nem mesmo a tradição de usar véu, ou chador, deriva do Corão, mas ela se difundiu por amplas áreas geográficas, independentemente da religião. Em sua origem, tal moda se limitava às classes superiores, não tendo penetração na sociedade agrícola, onde as mulheres deviam trabalhar no campo. A luta contra o véu vem sendo uma questão predominante na modernização de muitas nações árabes; entretanto, o reavivamento islâmico dos anos recentes também fortaleceu o apoio ao véu.

A filosofia no islã

O islã se espalhou pela Ásia e pela África, mas foi a conquista da Espanha que mais afetou a história européia. Entre os séculos VIII e XV, os árabes dominaram a parte sul da Espanha. Eles romperam com o califa de Bagdá e estabeleceram seu próprio califado em Córdoba. Essa cidade se tornou um centro cultural que atraía estudiosos de todo o mundo muçulmano, e demonstrava grande tolerância para com os judeus e os cristãos. A cultura hispano-moura passaria a exercer forte influência na Europa, não só na arquitetura e na literatura, mas também na filosofia. Foi graças aos filósofos árabes do Sul da Espanha que a Igreja católica descobriu Aristóteles, filósofo clássico da Grécia que haveria de desempenhar um papel considerável na formação do pensamento católico durante a Idade Média.

Averróis de Córdoba

O maior dos filósofos de Córdoba foi Ibn Ruchd, ou Averróis (1126-98). Ele acreditava que era seu dever defender a filosofia e a ciência, numa época em que forças poderosas dentro do islã desejavam impedir todo pensamento independente. Averróis foi um muçulmano devoto que aceitava a autoridade de Maomé e não questionava a veracidade do Corão. Acreditava, no entanto, que as afirmações do Corão podiam ser interpretadas de várias maneiras. O Corão é escrito para todas as pessoas, tanto cultas como ignorantes, e portanto utiliza um estilo alegórico bem específico. Os que não têm instrução precisam imaginar Deus sob uma forma humana e o paraíso como um lugar de confortos materiais. Contudo, comentava Averróis, os indivíduos mais esclarecidos percebem que esses conceitos são apenas símbolos que carregam um significado espiritual. 

Averróis desejava combinar a religião com o pensamento filosófico e científico, mas a oposição a esse ponto de vista não parou de crescer. Nos séculos que se seguiram à morte de Averróis, os estudiosos muçulmanos se concentraram no estudo das escrituras e da tradição. No século XX, porém, novas idéias de reforma e liberalização vêm sendo debatidas, e muitos muçulmanos têm tentado adaptar sua religião às condições atuais e à ciência moderna.

O Sufismo — O Misticismo do Islã

Os primeiros séculos da história do islã foram dominados pelas atividades externas, pela guerra e pela diplomacia. Entretanto, logo surgiu um movimento que incentivava a reclusão e a meditação. Essa tendência recebeu o nome de sufismo, provavelmente em virtude das vestes de lã usadas por seus seguidores (a palavra árabe para "lã" é suf).

Os ideais do islã podem não incluir o ascetismo, mas apelam para que se adote uma atitude séria em relação ao Juízo Final, num estilo de vida simples e responsável. Por isso muitos muçulmanos se indignaram com a vida luxuosa que passara a reinar na corte do califa de Bagdá. Eles desejavam levar uma vida puritana, de jejum, oração e meditação.

Ao mesmo tempo, o conceito divino ia se alterando. Os sufis acreditavam que Deus era, acima de tudo, um Deus amoroso com quem o homem podia alcançar uma união mística. Esse pensamento parecia contrastar substancialmente com a idéia de Deus como o juiz exaltado, inacessível, a quem o homem deve se submeter. Em conseqüência, os primeiros místicos logo entraram em conflito com a corrente principal do islã. Em certos casos foram acusados de blasfêmia por causa de seu conceito de Deus. Um dos místicos que mais se destacaram foi executado. Tratava-se de Halladj, que acreditava que Deus passara a morar dentro dele, e que, portanto, havia total unidade e harmonia entre Deus e ele. Para os sufis, Jesus era tão importante como Maomé, e muitas palavras atribuídas a Maomé lembram palavras de Jesus registradas nos evangelhos, como, por exemplo: "Eu sou a verdade", "Quem me vir, verá a Ele", e também, quando foi crucificado: "Perdoai-os, Senhor, tende piedade deles". Em suma, no início do sufismo Jesus representou um papel importante como ideal ascético.

Um século e meio depois de Halladj, Ghazali tentou combinar a devoção do sufismo com os dogmas da corrente principal do islã. Ghazali foi um dos maiores pensadores do mundo. Nem o estudo da filosofia, nem o da lei o satisfizeram. Após uma longa busca, ele tomou o caminho do misticismo, onde todos os desejos e todas as preocupações são afastadas para que o pensamento possa se concentrar em Deus. A conclusão de Ghazali foi que a verdade mística, real e última não pode ser aprendida, mas deve ser experimentada por meio do êxtase.

Em seu cerne, o misticismo sufi tem características comuns com o misticismo de outras religiões. O sufismo também usa exercícios especiais de meditação, como, por exemplo, uma oração ou uma palavra que é repetida continuamente, por vezes acompanhada de determinados movimentos ou exercícios de respiração. Trata-se de uma técnica para entrar em transe. Um auxílio usual é o rosário e a repetição dos "99 mais belos nomes de Deus".

O sufismo não é uma tendência organizada. Encontram-se sufistas tanto entre os muçulmanos xiitas como entre os sunitas.

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REFERÊNCIA:

GAARDER, Jonstein; NOTAKER, Henry; HELLERN, Victor. O livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. págs.: 130-136.

2 comentários:

  1. No mais, eu gostei do seu blog, achei muito bem escrito, as ideias são colocadas com responsabilidade.

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  2. Ola Carlos a menção ao grau de superioridade na sura 4:31 é a força, ou seja o homem tem o dever de proteger a mulher.
    De uma olhado aos artigos no blog resistencia4ever.blogspot.com APRESENTANDO O ISLAM: A MULHER MUÇULMANA, e RE POLIGAMIA.
    Obrigado

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