quinta-feira, 25 de março de 2010

O conflito Israelense-Palestino: Quem tem direito à Terra?

Por Carlos Chagas

Nascemos em um tempo no qual a história já decorria na guerra entre judeus e palestinos. Mas quem são estes e por que brigam entre si? Esta é a pergunta de muitos. O fato é que ambas as partes têm histórias parecidas. Ver-se-á aqui as versões de forma sucinta.

Sobre a Terra:

A terra se estende aproximadamente do mar vermelho até o rio Jordão (70Km) e de norte a sul cerca de 250 km. Para os judeus essa terra é conhecida como a terra de Israel. Para os árabes essa terra é chamada de Palestina. E ambos os povos acreditam que a terra lhes pertencem de forma exclusivista, ou seja, somente um povo tem direito a ela.

Sobre os povos Judeu e Árabe

Os judeus habitaram essas terras por muitos séculos. Após as revoltas contra os Romanos, de 70 a 135 DC, a terra, Judéia, recebeu dos romanos o nome de Palestina e os judeus expulsos dela. Isso ficou conhecido como a grande Dispersão dos Judeus. Desde então, os judeus oram para retornar a essa terra. Os judeus oram sempre voltados à sua cidade mais sagrada, Jerusalém. Estes sonham com um estado independente, o qual, segundo suas crenças, afastarão os perigos de perseguições como as da 2ª Guerra Mundial e das Cruzadas da Era Medieval.

Os árabes, por sua vez, habitam essas terras por séculos também. Após a conquista mulçumana dos séculos VI e VII sua presença aumentou significativamente. Suas vidas e tradições estão ligadas a esta terra, onde também tiveram ancestrais por inúmeras gerações. Jerusalém é considerada um centro religioso e cultural para a população árabe. Segundo sua religião, em Jerusalém ficam as Mesquitas de al-Aqsa e de Omar, o 3º local mais sagrado para os muçulmanos.A tradição diz que o Profeta Maomé ascendeu ao Céu montado em seu lendário cavalo, Al Buraq.

O Impasse

Fica então a decisão para ser tomada. E o problema se agrava porque  ambos os povos têm o direito a essa terra assegurados pela ética humana atual e por suas religiões; ambos os povos têm seus direitos amplamente reconhecidos pela comunidade das nações; e o pior, é que nenhum dos dois lados sumirá de uma noite para o dia: Nem os 5 milhões de judeus e nem os 4,5 milhões de árabes.

Aparentemente existem 4 formas de se corrigir o problema:
  1. Os árabes ficam com a terra;
  2. Os judeus ficam com a terra;
  3. Um estado bi-nacional para judeus e árabes;
  4. Dois estados para dois povos;
Mas a situação fica respectivamente se adotada as medidas supra-citadas:
  1. Genocídio ou deportação do povo judeu;
  2. Genocídio ou deportação do povo árabe;
  3. Bela idéia, mas impossível devido a tensão e ódio entre os povos que agora serão vizinhos de "parede-meia" (as mortes serão às milhares devido à intolerância religiosa-política-econômica-social-etc), além de ser contra os anseios de autonomia e auto-determinação de ambos os povos;
  4. A divisão é possível com um forte esquema de segurança e fortes fronteiras com uma possível paz.
A quarta opção parece ser a mais plausível, contudo provou-se ser impraticável. O Processo de Paz de Oslo (1993) visava por em prática a quarta opção. Após 3 anos de negociações (1996) o ainda vivo na época, o árabe Yasser Arafat rejeitou o acordo após mudanças feitas no plano de paz devido ao assassinato de Yitzhak Rabin, líder palestino, por um judeu extremista. Mas isso não quer dizer que o acordo de Oslo é ruim. Sua idéia ainda parece ser a única forma de uma possível paz entre judeus e palestinos. Todavia Oslo falhou devido ao desinteresse de ambas as partes, que iniciaram, cada um na sua vez, atentados, incitações de violência, políticas punitivas, bloqueios e invasões.

E então, há uma solução?

Essa é a pergunta que não quer calar. Após analisar tal conflito poderá ser constatado o problema: A INTOLERÂNCIA. No Brasil, grande parte defenderá, sem uma 2ª tentativa de pensamento, os judeus. Por quê? Porque o Brasil é 90% cristão, e o cristiansimo teve como berço o judaísmo. O Antigo Testamento é a prova disso. Mas apoiar um povo apenas é covardia porque todos lutam por seus direitos. A quem acredita que os Israelenses têm direito à terra porque eles estiveram lá primeiro que os árabes. Mas se assim for, como ficará a situação do Brasil quando um índio chegar em Brasília reivindicando sua terra roubada?

Muitos cristãos dirão: "Israel é quem tem direito a terra, uma vez que seu Deus é o nosso Deus: Jeová". Todavia tem-se um problema: Os próprios profetas do AT perceberam uma coisa que os cristãos de hoje não admitem. Será citado aqui um trecho do texto de Amós: "Não me sois, vós, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes? diz o SENHOR: Não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, e aos filisteus de Caftor, e aos sírios de Quir?" (Am 9.7). Ou seja, Amós diz que o SENHOR Deus não é Deus apenas de Israel. Não foi só Israel quem foi retirado de terras de servidão. Deus controla tudo e é Deus de todos, n~]ao importa a religião. O que Ele quer da humanidade não são regras criadas por homens que não passam de regras rituais e cerimoniais, mas o que Ele quer é a vivência de suas próprias regras, ou seja, que se viva a vida, em amor e em paz; tanto de homem para com homem, quanto de homem para com Deus e com a criação.

O fato é que a paz deve alcançar a todos. E o problema é que todos dizem que é a favor da paz, no entanto, quem, em sã consciência, sairia por aí gritando que é a favor da violência? A luta não se deve resumir apenas em frases, mas em conduta. Israel e a Palestina só encontrarão paz quando eles praticarem a paz, não se detendo apenas em palavras. E tirando proveito disto, é isso que o  Brasil também deve observar, afinal, a única coisa que se deve ficar em dívida com alguém, é com o amor. Esse sim trará a solução, não para um, mas para todos; não em palavras, mas com ações. Que haja um céu naquele inferno para a glória de Deus e paz entre todos.

segunda-feira, 22 de março de 2010

A formação dos escritos do Antigo Testamento: A Obra Histórica Deuteronomista PARTE 2/2

Elaborado por: Súsie Helena Ribeiro e Dalton Said Henriques 

1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

Martin Noth, levado pelas idéias que expressou em seu comentário ao livro de Josué em 1938, propôs a hipótese de uma obra histórica Deuteronomística (deuteronomista), englobando desde o livro de Deuteronômio até o segundo livro dos Reis (Uberlieferungsgeschichte Studien [Estudos da Tradição], 1943, 1957. Jepsen, trabalhando independentemente, chegou a conclusões semelhantes (Die Quellen des Konigsbuches) [As fontes dos livros dos Reis, 1953].

Anteriormente estes livros históricos veterotestamentários eram explicados de modo similar ao Pentateuco, considerando-se que as fontes escritas já ofereciam certas narrativas. Não se ignoravam as passagens deuteronômicas do livro de Josué e dos Reis, que chamam a atenção por sua linguagem característica nas expressões e no estilo. Porém essas passagens eram consideradas como adições de redação a um complexo narrativo já preexistente. Somente no livro dos Reis foi atribuída a essa redação, em maior medida, a seleção e readaptação do material tradicional.

Martin Noth atribuiu ao Deuteronomista a autoria de todo esse complexo literário. Esse autor criou uma obra (de maneira similar ao javista?) “Que não se conhece igual ao seu mundo cultural. Ela engloba ao redor de sete séculos de história israelita, desde a época mosaica até o exílio Babilônico; reelabora com grande esmero tradições literárias e feitos vividos diretamente, e chega assim a uma concepção de assombrosa unidade” (Das Kerygma des deuteronomista Geschichtswerk,1973, p. 308).

Antes da obra deuteronomística não existiu um projeto histórico que abarcasse, de forma ininterrupta, todos esses séculos. Existiam, sim, relatos soltos de ciclos narrativos, como as compilações do tempo de Josué e dos Juízes, ou episódios de períodos parciais, como a história da ascensão de Davi e da sucessão ao seu trono em 1Sm 16 a 1Rs 2. Também eram independentes os ciclos de relatos de Elias e Eliseu, em 1Rs 17 a 2Rs 13, e outras narrações proféticas. Além disso, a obra resume materiais de gênero diverso: tradições de santuários ou da corte, listas, por exemplo, de funcionários (2Sm 8.16s; 20.23; 23.8; 1Rs 4), extratos de crônica, etc.

Segundo Noth, há duas razões que justificam a existência de uma obra literária completa desde o Deuteronômio ou de Josué até 2 Reis:

Aparece com certa clareza o conjunto e a conexão da cronologia (cf. como indicação sumária 1 Rs 6.1 a construção do templo salomônico no ano 480 depois da saída do Egito).

Reflexões são introduzidas nos pontos históricos decisivos, às vezes em forma narrativa, outras vezes como palavras do personagem principal. Essas reflexões não acrescentam propriamente novos dados. Em vez disso, elas procuram interpretar a história e emitir juízo sobre ela. Expressam pontos de vista similares sobre a teologia da história e manifestam o mesmo estilo característico. Tais inserções constituem uma espécie de sermões, uma espécie de discurso que poderia haver-se inspirado na pregação profética. Vejamos um esboço incluindo o começo, as inserções e o final da exposição histórica deuteronomística:

1.1 O Tempo de Moisés

Dt 1 – 3 (4): Moisés evoca a peregrinação desde Horebe até o leste do Jordão; designação de Josué como seu sucessor.

Dt 31.1 – 8; 34: Discurso de despedida de Moisés, investidura de Josué, morte e sepultura de Moisés.

1.2 O Tempo de Josué

Js 1 e 23 – (24): Começo e fim da conquista do oeste do Jordão.
1: Entrega da liderança a Josué.
12: Resultados da conquista do país.
21.43 – 45: Nota final de cumprimento da promessa.
23: Discurso de despedida de Josué.
24.28s; Jz 2.6s: Morte e sepultura de Josué (cf. Dt 34.5s).

1.3 O Tempo dos Reis

2Sm 7: Instruções de Natã (elaboração deuteronomista, com consideração retrospectiva v.1) 1Rs 3 e 9: Revelações de Deus a Salomão
1Rs 8 (v.14s): Oração de Salomão na consagração do Templo. 1Rs 11 – Apostasia de Salomão
2Rs 17: Queda do reino Setentrional (juízo retrospectivo, v. 7 – 23).
2Rs 25: Destruição de Jerusalém (breve juízo 21.10s; cf. 22.16s; 23.26s).

1.5 Distribuição da Obra Histórica

A distribuição da obra global nos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis é tardia, e coincide, somente ao princípio (no tempo de Moisés e de Josué). Com as inserções previstas originalmente.

Contudo, a divisão atual parece ter surgido muito cedo, já que o final do livro de Juízes e do segundo de Samuel (Jz 17 – 21; 2Sm 21 – 24), e talvez também ao começo dos Juízes (Jz 1), existem pressumivelmente apêndices que interrompem o conjunto das narrações originais. Ao contrário, a bipartição dos livros de Samuel e dos Reis é conhecida desde os tempos medievais tardios.

O conteúdo indica o limite superior da época do nascimento da obra: parece ser que ela foi escrita depois dos últimos acontecimentos descritos em 2Rs 25.27-30 (o sucessor de Nabucodonosor, Evil Merodac [562-560, livra da prisão e acolhe em sua corte o rei Jeconias de Judá]), provavelmente durante o exílio ao redor de 560 a.C. Pelo menos o fundo básico não ultrapasse essa data. Com efeito, não se menciona e nem sequer se alude à mudança radical que o período persa trouxe consigo (desde 539 a.C.). O lugar da composição é discutível, mas (como no caso das Lamentações) parece ter sido a Palestina, não o território babilônico (foi composto o escrito sacerdotal). Talvez ela se deu Mispá, que alcançou uma certa importância depois da destruição de Jerusalém (2Rs 25.22s).

Diversas observações nos obrigam a emendar as idéias de Noth num ponto: não houve um autor deuteronomista solitário, mas uma escola Deuteronomista. Deste modo, explicam-se, por um lado, certas incoerências e complementos dentro da obra histórica deuteronomista escrita em um estilo literário homogêneo e com um arbítrio similar: o autor mudava, mas a escola permanecia. Por outro lado, compreende-se sua grande influência no velho testamento além dos limites dos livros históricos de Josué a Reis, por exemplo, na configuração dos livros proféticos. A escola transmitia e comentava (sob a influência do Deuteronômio?) a tradição histórica e profética.

Foi de certa maneira o Deuteronômio o fator que determinou o nascimento da escola deuteronomística? Seja como for, não está claro se o Deuteronômio sempre formou parte da obra histórica Deuteronomista ou se foi agregado a ela de modo secundário. Com base em certos desajustes nos livros dos Reis. Cabe pensar também que existiu outra redação mais antiga, pré-exílica, da obra histórica Deuteronomista.

Com mais fundamento, considera-se, atualmente, como deuteronomista numerosas passagens dos livros de Samuel e dos Reis. A elaboração deuteronomista intervalo nas tradições e nos textos mais do que anteriormente se supunha. Contudo, existe o perigo de se apelar excessivamente ao deuteronomista como no caso do Pentateuco, é preciso distinguir as notas de conexão e as interpretativas, as observações redacionais e o material deuteronomista específico, demonstrável fisiologicamente. Esta distinção é importante para a determinação da antiguidade do material e dos relatos.

Há autores que procuram estabelecer uma história da redação deuteronomista, distinguindo, além do extrato de elaboração mais tardia. Trata-se da concepção fundamental da obra histórica (deuteronomista H), uma elaboração que inclui textos proféticos (deuteronomista P), e outra questão das intenções teológicas teríamos que partir dos diferentes extratos da obra histórica deuteronomista se é que eles podem ser determinados com certa precisão.

A obra histórica deuteronomista traz à luz as mais diversas tradições (importantes para o historiador atual) com sentimento de reverência para com o passar, e as suas fontes, especialmente os “diários” dos reis (1Rs 11.41; 14.19, 29, etc.), onde o leitor interessado pode obter mais informação. Segundo Noth, o deuteronomista não tentou construir a história do povo de Israel, mas quis apresentá-la objetivamente sobre a base do material que teve a sua disposição. Contudo, na opinião de Werner H. Schimidt, este juízo parece demasiado ambíguo em sua segunda parte.

Em primeiro lugar, a obra histórica deuteronomista efetua uma seleção do seu material tradicional, destacando, com base em suas intenções teológicas, os dados relacionados com Deus, com o culto e com certas notícias sobre acontecimentos políticos e bélicos. Em segundo lugar, essa obra complementa a tradição e a modifica com adições, embora às vezes também recolha os fatos mesmo quando não respondem à intenção teológica da obra (cf. 1Sm 8 – 13, sobre a origem da monarquia). Finalmente, a obra julga os acontecimentos partido de sua ótica particular. Em conseqüência, ela não pretende somente expor “como aconteceram as coisas”, não procura somente recolher, ordenar e apresentar os eventos, mas interpretá-los. Ela descreve a história do ponto de vista da fé, em última instância como uma forma de conduta diante de Deus e de seu mandato. Por isso a obra histórica deuteronomista, que de um lado pode se considerar como obra de um historiador, pode se qualificar, de outro, com o mesmo direito, como um “seus tendencioso” (J.A. Soggin).

2. INTENÇÕES TEOLÓGICAS

Israel ficou profundamente afetado pela decadência do reino Setentrional e, sobretudo, pela catástrofe que terminou no exílio da Babilônia. Por isso a obra histórica deuteronomista, se destinava a responder uma pergunta que anteriormente nenhum relato ou crônica havia considerado: a pergunta sobre a existência e o destino do povo de Deus não corresponde somente a um enfoque imposto pela situação. Antes, ela adota ao mesmo tempo o esquema da mensagem profética e um ideal básico do Deuteronômio.

Quando a obra deuteronomista exorta à obediência, ao temor e o amor de Deus, ela faz ver, ao mesmo tempo, evocando o passado, a deficiência de Israel em seguir tais conselhos. A obra constitui, pois, antes e depois da catástrofe, uma de autoconhecimento ou de confissão em forma de uma revisão histórica. O passado de Israel, desde a posse da terra, até o período mais recente, é uma histórica de constantes quedas diante de Deus, que advertia, castigava e no fim vingou duramente sua contínua desobediência. Assim, a historiografia tem um sentido concreto: diante da catástrofe nacional, a demonstração da culpa exclusiva de Israel e da justiça de Deus.

O primeiro resultado desse exame foi: Javé não é responsável; Israel se tornou indigno da felicidade por sua própria culpa. O juízo de Javé na história foi justo. Assim, o deuteronomista se fundamenta na frase “Proclama o céu a sua inocência, que Javé em pessoa vem a Juízo” (Sl 51.6); “sua obra é uma grande doxologia da justiça de Deus, transporta do plano culto ao plano literário” (Gerhard Von Rad, Teologia do i, 421-422).

Tal confissão dificilmente teria sido possível sem o profetismo anterior. Assim, o canto da vinha de Isaías (Is 5) contrasta a ação salvadora de Deus à ingratidão de Israel. Sobretudo, a visão crítica da história israelita (como em Os 11s; Is 9.7s; 43.27s) constitui uma antecipação da obra deuteronomista. A história é o castigo pela culpa, a culpa do povo, e não do indivíduo. O castigo pode demorar por gerações, mas não falha (cf. 1Rs 13 com 2Rs 23.15s ou 1Rs 21.23 com 2Rs 9.36).

A obra histórica deuteronomista toma do Deuteronômio o interesse central pelo primeiro mandamento e evoca repetidas vezes, sob diversas expressões, o primeiro e o segundo mandamentos. O cumprimento da lei não consiste, de modo algum, no cumprimento casuístico dos mandamentos, mas possui o único sentido: não servir aos deuses dos povos vizinhos (Js 23.6s). Assim a obra apresenta no fundo uma só que são questão: como Israel cumpriu a exclusividade e a imaterialidade da sua fé, dois aspectos que aparecem unificados (1Rs 14.9; 2Rs 17.16, etc.). A obra examina a Israel através dos séculos para averiguar se ele “esteve aderido” a Javé (Js 23.8) e se o rei lhe pertencia inteiramente (1Rs 11.4, etc.). A sentença é negativa tanto com respeito ao tempo dos juízes (Jz 2.10s) como o dos reis, embora num sentido diferente, em ambos períodos.

Se a obra histórica deuteronomista concebe a época dos juízes como um tempo em que oscila entre Javé e os baais (Js 2.10s), na época seguinte toda a atenção se concentra em um só ponto: O poder e a responsabilidade se atribuem ao rei (apesar das limitações que estabelece Dt 17.14-20); o rei é o objeto direto da condenação que afeta sua geração.

As possibilidades que a monarquia apresentava ficaram logo comprometidas; ao período de esplendor sob Davi segue uma lenta decadência, e não altos e baixos cíclicos como no tempo dos juízes.

Até mesmo sobre Salomão já recai o juízo: seu coração não esteve inteiramente com Deus. (1Rs 11.4; cf. 8.58,61). Este mesmo veredicto se estende com mais dureza a quase todos os seus sucessores. A tomada de posição direta que falta no relato davídico aparece clara depois, quando o comportamento desse rei passa a ser o critério de conduta:

Seu coração não pertenceu completamente a Javé, seu Deus, como coração de Davi, seu antepassado. Porque Davi fez o que Deus aprova, sem desviar-se de seus mandamentos em toda sua vida, exceto no assunto de Urias (1Rs 15.3,5: cf. 9.4; 11.34, 38; 148, etc.).

Além de Davi, outros reis (de Judá) são objeto de elogios: Asa com restrições (1Rs 15.11, 14), Ezequias sem reservas (2Rs18.3s), o que Josias em termos extremos:

Nem antes nem depois houve um rei como ele não, que se convertesse a Javé de todo coração, com toda a alma e com todas suas forças, de conformidade com toda a lei de Moisés (2Rs 23.25: cf. 22.2).

A conduta do rei para com Deus, mais exatamente para com a lei mosaica contida no Deuteronômio, decide sobre a bondade ou maldade da época. Este critério levará à condenação a monarquia do reino Setentrional, já que a decisão política trazia consigo o afastamento do único santuário de Jerusalém escolhido por Javé. Também o reino Setentrional teria sido salvo, se houvesse guardado os mandamentos como Davi (1Rs 11.38s); mas já o primeiro rei Jeroboão se desviou do caminho reto por sua iniciativa de independentização do culto e determinou assim a falsa orientação do futuro (cf. 1Rs 14.7s; 2Rs 17.21-26s). Com a organização de um culto próprio que perdurou durante toda a história do Estado, com o pecado de Jeroboão (1Rs 14.16, etc.; 2Rs 17.21) parece que a decadência ficou irremediavelmente selada.

Os critérios da obra histórica deuteronomista são, pois, muito unilaterais. Ela diz sobre faltas éticas ou políticas, sobre a injustiça social, tão censurada pelos profetas. Em geral, pela só se refere a delitos religiosos: ir após deuses estrangeiros, transgressão do primeiro e segundo mandamentos, ruptura da unidade e da pureza cúlticas. Contudo, ela coincide com a preocupação profética em fazer mais ênfase nos desvios do que no chamado à conduta justa. Sobre a obra e efetivo do culto expressa a idéia de que a salvação e a desgraça se decidem na história, através da fidelidade ou da infidelidade à própria fé, que implica exclusividade.

A redução da culpa ao âmbito religioso-cúltico, contrariamente à pregação profética, surpreende principalmente porque a obra deuteronomista, ao menos definitiva, concede um amplo espaço aos relatos de profetas, e designa os próprios profetas uma grande importância para a interpretação dos acontecimentos históricos. A palavra de Deus que, segundo a mensagem profética, ressoa esporadicamente no tempo (Isaías cf. 9.7), converte-se agora em realizadora da história, como fora a criadora do mundo segundo o escrito sacerdotal (Gn 1) e regeu os destinos da história ulterior. A exposição deuteronomista nasce da palavra de Deus, que se deixa ouvir como promessa e como ameaça (1Rs 11.29s; 14.7s. etc.) e como realizadora de futuro (cf. os múltiplos sinais de cumprimento, como Js 21.43s; 23.14; 1Rs 15.29; 16.12, etc.).

Nos relatos sobre profetas, estes anunciam a morte dos reis, como fez Elias (1Rs 21.2; 2Rs 1). A obra deuteronomista pode generalizar esses anúncios – sem dúvida pela influência do profetismo escrito – considerando a ruína Setentrional (2Rs 17.23) e do reino meridional como realização da ameaça profética: destruir a Judá “conforme a palavra que Deus, pronunciado por intermédio dos seus servos, os profetas” (2Rs24.2 depois de 20.12s; 21.10s; 22.16s; 23.27). Apesar disso, parece estranho que a obra deuteronomista não mencione nominalmente os grandes profetas de calamidades, como Amós, Oséias ou Jeremias (sobre Isaías cf. 2 Rs19s).

Os profetas, “Servos de Javé”, como são freqüentemente chamados de forma estereotipada na literatura deuteronomista (17.23; 21.10 etc.) tanto anunciam a desgraça, como também assumem, segundo 2Rs17.12, a missão de pregadores do arrependimento: “Convertei-vos”, e exortam à obediência à lei (deuteronômica). As duas concepções do profetismo são possíveis porque a obra histórica deuteronomista vê os profetas em uma situação completamente distinta da de seus ouvintes. As ameaças proféticas se cumpriram, confirmando assim a verdade. O anúncio profético, tanto em sua predição do futuro (cumprido), como em suas chamadas (não atendidas) à conversão exerce a função de testemunho de culpabilidade: o povo não tem desculpa, pois já foi avisado. Mas no supõe isso uma mudança de tom? Ou há outra concepção da profecia no profetismo escrito, que ameaça pelo conhecimento que tem da desgraça iminente e justifica o castigo em suas acusações? É certo que a mensagem profética e a obra deuteronomista denunciam a culpa do povo; mas estavam os profetas tentando avisar?

Segundo Martin Noth, o tema do deuteronomista era “a história passada e já concluída do seu povo”; a pergunta lógica, que indaga se o sentido da história narrada por ele se encontra no futuro, as coisas que nascerão das ruínas da ordem anterior, ficou sem resposta, e na verdade o deuteronomista nem sequer a formulou expressamente. No castigo divino do desastre de Israel relatado pelo deuteronomista, este aparentemente, viu algo definitivo e concluído, e não expressou uma esperança do futuro, nem sequer forma mais modesta e simples de uma expectativa de repatriação e dos deportados.

A obra deuteronomista ameaça de fato muitas vezes com a deportação no caso de desobediência(Js 23.13s; 1Rs 9.7s; 2Rs 17.18,23; 21.14s; etc.), mas dificilmente manifesta expectativas que vão além deste ponto temporal do castigo divino (elas falta especialmente em 2Rs 17; 25). Como o escrito sacerdotal contemporâneo, a obra deuteronomista não contém alusões diretas a um futuro venturoso, tampouco nesse ponto coincide com a pregação profética.

Gerhard Von Rad expressou a opinião de que a obra histórica deuteronomista tem apresentado sempre, desde Davi, a imagem do ungido perfeito. Não somente as ameaças proféticas, mas também as promessas de Natã tiveram uma eficácia histórica. Assim, ao dar a notícia final da anistia de Jeconias (2Rs 25.27s), a obra apontaria para uma possibilidade sempre permanente em Deus. Em qualquer caso, essa notícia não evoca a promessa de Natã e não parece ter a elevada missão de aludir a um futuro messiânico. Mas com esse final aberto, fica a salvação ou a ruína futura pairando no ambiente? Continua vigente a oferta e a ameaça de “servi a Javé sinceramente e de todo o coração” (1Sm 12.24, 14s; 1Rs 2.4; 9.4; etc.)?

Segundo Hans Walter Wolff, a história deuteronomista contém afirmações mais ou menos veladas e indiretas sobre o futuro, já que o tema da conversão (shub) ressoa em quase todas as passagens importantes (Jz 2.6s; 2Rs 23.25; etc.) 2Rs 17.13 resume explicitamente a mensagem de todos profetas na exortação: “Retornai do vosso mau caminho”. Mas aqui está a reação ao chamado ao arrependimento: “não fizeram caso, mas se endureceram, como seus pais, que não confiaram em Javé, seu Deus” (17.14s,19 21.9). A oferta da conversão se refere, pois a um situação passada que desperdiçada.

Somente a oração de Salomão na consagração do templo, embora em complementos tardios (1Rs 8.46s), indica expressamente que Israel, mesmo depois da condenação, no exílio, poderia converter-se e confessar sua culpa de tal forma que Javé lhe escutasse, perdoasse o pecado (v.50) e não rejeitasse seu povo:

“Que Javé, nosso Deus, esteja conosco, como esteve com nossos pais, que não nos abandone a nem nos rejeite. Que se incline para ele o nosso coração, para que sigamos seus caminhos e guardemos os preceitos, ordenanças e decretos que deu a nossos pais” (1Rs 8.57s; cf. Lm 5.21s; Lv 26.44). Esta esperança implica em que todos os povos reconheçam a Javé como Deus (1Rs 8.60, 41). O esquema tardio do Deuteronômio contempla com maior confiança um futuro melhor, e na hora da dispersão espera a reunificação da diáspora e o regresso de Israel ao seu país (Dt 4.29-31; 30.1s).

Assim, os apêndices da obra histórica deuteronomista, que lhe dão continuidade, contemplam o futuro para além do horizonte do castigo e apontam a uma nova meta da história. Mas a obra em si parece se contentar com uma olhada retrospectiva ao passado, com a confissão da culpa e com a justificação do proceder de Deus.

3. QUESTÕES LEVANTADAS PELOS EXILADOS

A obra histórica deuteronomista parece destinada principalmente a trazer respostas para as questões que afligiam os exilados. Esse acercamento nos pode ajudar melhor a interpretar a obra. Em geral, estas eram as preocupações que deveriam ter existido entre os exilados:

Questões sobre identidade: Somos ainda o povo de Deus, ou tem Deus nos abandonado, talvez para sempre?

Questões sobre culpa: O que saiu errado? Deve toda a culpa ser colocada em nós? Existe perdão para crimes tão horrendos?

Questões sobre teodicéia: Foi Deus justo para conosco? A punição é correspondente ao crime? Foram as ações de Deus justificadas? Estamos sendo punidos pelos pecados dos outros?

Questões sobre esperança: Existe qualquer lugar para a esperança, ou estamos condenados ao desespero?

Questões sobre a fidelidade divina: Irá Deus permanecer fiel às antigas promessas? As promessas da terra, prosperidade, etc., ainda valem ou se perderam todas?

Questões sobre a presença divina: Com a destruição do templo, estaria Deus ainda presente entre o povo? Está Deus disponível onde estamos agora?

Questões sobre o poder divino: Dada a derrota de Israel nas mãos de inimigos que serviam a outros deuses, o que isso quer dizer sobre o poder de Javé? Mesmo que haja vontade de sua parte, tem a deidade habilidade para produzir libertação?

Questões sobre idolatria e sincretismo: Valeu a pena adorarmos a um só Deus? Não seria melhor para o nosso futuro se fôssemos mais sincretistas?

Questões sobre pureza: Qual deveria ser nosso relacionamento com outros povos, dado os problemas que a miscigenação nos trouxe no passado? Deveríamos ser separatistas?

Questões sobre continuidade e mudança: Até que ponto se for realmente necessário, podemos confiar nas antigas verdades? Os veneráveis símbolos da fé (por exemplo, o templo) permanecem como parte daquilo que significa ser o povo de Deus?

Questões sobre um novo começo: Qual deve ser a forma da comunidade no outro lado do Exílio? O que podemos fazer para assegurar que isso não aconteça de novo?

Questões sobre liderança: Dados os padrões anteriores de liderança, o que é apropriado para hoje e para qualquer futuro que Deus tiver reservado para nós? 

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Responda você mesmo à pergunta: Moisés escreveu o Pentateuco?

A formação dos escritos do Antigo Testamento: A Obra Histórica Deuteronomista PARTE 1/2

Elaborado por: Súsie Helena Ribeiro e Dalton Said Henriques

O Novo Testamento responde à pergunta sobre o mandamento principal (Mc12. 28s) citando Dt 6.4s, e esta passagem constitui a parte fundamental do credo judaico, o shemá, que serve também para resumir a idéia principal do Deuteronômio: a dedicação total ao Deus único. Nenhum outro livro do Velho Testamento falar com tal profundidade sobre o amor de Deus, nem convida com tal encarecimento a corresponder-lhe e a desfrutar de seus dons.

A denominação “Deuteronômio” (“segunda lei”, com respeito à primeira promulgada no Sinai) nasceu de uma interpretação errônea do termo “cópia ou transcrição da lei” em Dt 17.18. O Deuteronômio tem como propósito conduzir o povo à obediência desses mandamentos.

Esse livro é realmente muito importante. Ele marcou profundamente a vida do povo e influenciou muitas partes do Antigo Testamento. Sob sua a inspiração surgiu a chamada “obra histórica Deuteronomística”, que inclui os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. A redação Deuteronomística deixou suas marcas no Pentateuco e principalmente na tradição profética. Depois desse livro, os escritos vetero-testamentários, como o códice sacerdotal, por exemplo, só conhecem um lugar de culto.

1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

1.1 Vocabulário e Estilo

Enquanto as compilações legais do Pentateuco costumam registrar as palavras de Deus a Moisés, o Deuteronômio contém os discursos de Moisés ao povo, e só indiretamente as palavras de Deus. As promessas e as disposições legais vêm a ser o legado daquele que conduziu Israel desde o Egito, através do deserto, até a fronteira da terra prometida: são as palavras de despedida de Moisés.

Ao redor do núcleo legal (12-26), encontra-se um marco interno (5-11; 27-28) e um externo (1-4; 29-30); os capítulos legais (31-34) contém o cântico (32) e a bênção (33) de Moisés e algumas notas sobre a investidura de Josué como chefe (31) e sobre a morte de Moisés (34), entre outros pontos. Trata-se de uma estrutura concêntrica, que pode ser ilustrada num esquema escalonado:

Como no caso do código da aliança (Ex 20.24ss), a lei deuteronômica começa com disposições sobre o lugar de culto, neste caso sobre a centralização cúltica (12-16). Segue um bloco (16-18) sobre personagens oficiais, como rei, os profetas, os sacerdotes e os juízes, com reminiscências do livro de Jeremias (21-23). Na terceira e última parte (19-25) se misturam diversos temas.

1.2 O Deuteronômio e a reforma de Josias

Tem prevalecido a idéia, desde o início do século passado, de que o Deuteronômio era originalmente um livro independente, relacionado de alguma forma com a reforma do rei Josias, em 621 a. Na verdade, existem profundas coincidências entre o Deuteronômio e o relato de 2Rs 22,23 sobre a legislação e a reforma:

A centralização do culto efetuada por Josias, indo muito mais além de reformas conhecidas até então (com o objetivo de purificar o culto de elementos estranhos), excluindo outros santuários Javé.

As festas da páscoa celebradas em comum.

A erradicação dos cultos astrais, da prostituição sagrada, a destruição de santuários nos altos e estrelas, a proibição dos sacrifícios de crianças, da adivinhação, da necromancia e de outras práticas estranhas.

Tudo isso só se pode explicar à luz das exigências da lei deuteronômica. O próprio temor que o rei demonstrou com o achado e a leitura da lei pode ter sido provocado pelas maldições que Dt 27s lançava contra seus transgressores.

Vê-se, portanto, que o Deuteronômio reflete as circunstâncias do período monárquico ou posterior. Ele conhece, com efeito, os perigos da monarquia (17.14ss) e previne-se contra o falso profetismo (13.2s; 18.9s).

1.3 Localização e data de origem

Quando e onde apareceu Deuteronômio? Supõe-se geralmente que um fundo básico do livro remoto ao século VII ou inclusive à segunda metade do século VIII, pouco antes do aparecimento do primeiro profetismo escrito, ao redor de 750, ou talvez antes da destruição do reino Setentrional, em 722 a.C. Indícios diversos sugerem que o reino Setentrional não foi o lugar de origem do Deuteronômio, mas, sim, de certas idéias e tradições, inclusive de algumas partes do livro.

Essa herança Setentrional se vê nos seguintes fatos:

  • Existem no Deuteronômio algumas analogias com os ciclos de Elias e Eliseu;
  • Aparecem afinidades com o profeta Oséias;
  • Também talvez referências ao eloísta (as idéias de “tentar”, por exemplo);
  • Uma concepção particular da realeza, incluindo o aviso contra a eleição de um estrangeiro como rei (Dt 17.15), que não teria sentido no reinado da dinastia davídica em Jerusalém;
  • Reprovação pelo desvio de toda uma cidade da fé javista (Dt 13.13s), que parece ajustar-se melhor às circunstâncias do reino Setentrional.

Essa herança do norte poderia ter sido levada para o reino Meridional ao redor do ano 722 a.C., com a mensagem de Oséias e o eloísta, para se misturar com o patrimônio cultural do sul. Jerusalém passa a ser então, não o lugar de origem, mas de aplicação das leis deuteronômicas. A forma característica “o lugar que Javé escolheu” foi relacionada tardiamente com Sião.

1.4 Processo de Formação

O Deuteronômio não é, pois uma obra simples e de linhas bem definidas, mas um escrito bem complexo. Sua forma atual não coincide com a lei descoberta nos dias de Josias,, geralmente denominado “o documento do templo”.

O Deuteronômio oferece um recurso específico para se descobrir diversas camadas nos textos em prosa e nas leis: a mudança de número gramatical: a redação no singular é mais antiga, e as formulações no plural são complementos posteriores. Existem, não obstante, adições no singular.

A evolução do livro se deu aparentemente de dentro para fora, num longo processo de pelo menos três estágios:

  • O Deuteronômio primitivo deve se localizar basicamente no núcleo dos mandamentos (Dt.12 – 25). Sua idéia principal é a centralização do culto.
  • Uma redação deuteronômica (talvez na época de Josias) elabora as leis e acrescenta substancialmente o contexto interno da introdução (Dt 5 – 11), talvez também partes de 27ss.
  • A redação pós-deuteronômico-deuteronomística, posterior ou exílio (587 a.C.), traz novos complementos ao corpo legislativo.

O que se concluí desse processo de formação é que o Deuteronômio não é fruto de um só autor, mas de uma escola à qual se denomina primeiramente “o Deuteronômica”, e mais tarde “Deuteronomística”.

2. INTENÇÕES TEOLÓGICAS

Num plano formal, as idéias centrais do Deuteronômio podem ser resumidas em três palavras: um Deus, um povo, um culto. Pode-se ainda acrescentar: no país, um rei, um profeta.

1.1 Centralização Cúltica

Até então Israel conhecia uma pluralidade de santuários (Ex20.24), sendo alguns deles lugares importantes de peregrinação. O Deuteronômio, contudo, é exclusivista (12.13s). Essa centralização traz consigo mudanças profundas na vida religiosa do povo, especialmente para a população que mora fora de Jerusalém. A conseqüência principal é a secularização da matança de animais (matança profana este parêntese. O animal morto, ante um sacrifício, passa a ser simples comida.

1.2 Unidade de Deus

Na forma atual do Deuteronômio, a unidade de culto é conseqüência da unidade de Deus, conforme o Shemá (Dt6.4). Essa unidade de Javé pode ser entendida na linha de um estrito monoteísmo, ou ainda como uma confissão de unidade diante das tentações Cananéia e o pluralismo do culto de Baal, ou ainda diante da variedade das tradições e dos lugares de culto javista.

1.3 Unidade do Povo

O Deuteronômio, além de falar ao indivíduo, fala todo o povo. A unidade de Deus corresponde à unidade do povo. Falta no Deuteronômio referência à divisão do povo em tribos ou aos reinos do norte do sul. Há uma ênfase no fato de que Javé é o Deus do povo, o povo é propriedade de Javé, um “povo santo”, sugerindo, portanto, uma distinção importante entre Israel e os outros povos.

1.4 Convivência Social

O Deuteronômio procura extrair conclusões da unidade do povo de Deus que se apliquem à vida coletiva. As autoridades do povo devem sair do meio do próprio povo. O próprio rei não pode se levantar com orgulho entre seus irmãos. O Deuteronômio prega uma igualdade de todos perante Deus. Todos são irmãos, numa mesma comunidade, onde deve prevalecer o amor. Os pobres, o estrangeiro (exilado pobre e desamparado), o órfão e a viúva devem ser respeitados, segundo a lei, e atendidos em suas necessidades. Várias leis humanitárias são instituídas pelo Deuteronômio, embora algumas delas nunca passaram, talvez do plano teórico. Contudo, elas constituem um ideal de vida social onde predomina o amor e a solidariedade.

1.5 Perspectiva de Tempo

A unidade do povo de Deus se expressa não só na convivência cotidiana de Israel, mas também na visão comum do passado. A atualização do passado é mais importante do que o próprio acontecimento histórico. O passado fica absorvido pelo presente, o “agora”: “Escuta, Israel os mandatos e decretos que hoje lhe anucio” (5.1). o Deuteronômio enfrenta o passado e presente em uma posição irredutível: “Não fez esta aliança com nossos pais, mas conosco, que estamos vivos hoje” (5.3s).

O Deuteronômio não contém nenhuma expectativa de futuro propriamente dita. Contudo, a vida de fidelidade pode trazer uma longa vida, paz diante dos inimigos, fecundidade na natureza e a abolição de todas as enfermidades. Como esses bens não são uma realidade presente, Deuteronômio sugere que a verdadeira plenitude da vida humana é uma possibilidade ainda não realizada. 

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domingo, 21 de março de 2010

A formação dos escritos do Antigo Testamento: O Escrito Sacerdotal

Elaborado por: Súsie Helena Ribeiro e Dalton Said Henriques

1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

O espírito do escrito sacerdotal se revela em suas três características mais importantes.

1.1 Vocabulário e Estilo

O P é facilmente identificável pelo vocabulário e qualidades estilísticas. Exemplo de expressões peculiares a P: “crescei e multiplicai-vos” (Gn1.28; etc), “recordar o pacto” (9. 15s; etc), estereotipadas (Ex16.16; Lv 1.1s; etc). Outra característica é os grandes períodos com freqüentes repetições. O escrito básico carece, em geral, de vida, de plasticidade, do detalhe pitoresco e do calor da linguagem. Os personagens aparecem simplesmente esboçados, sem seus traços concretos. O elemento narrativo passa a um segundo plano, em comparação com as fontes mais antigas. A uniformidade produz uma impressão ambígua: pode alcançar o sublime (Gn 1), mas também se degenerar no estilo rígido, esquemático e até pedante. O estilo prolixo decorre da intenção de se dar uma descrição exata de cada fenômeno, buscando concentrar-se em princípios teológicos.

1.2 Preocupação com Cifras

O escrito sacerdotal apresenta, em maior medida do que as fontes antigas, uma série de cifras. Isso vai desde a medida da arca até o senso do povo. O estilo sacerdotal contém, em especial, uma cuidadosa cronologia em projeção retrospectiva, começando prudentemente com a contagem dos dias no relato da criação e passando pela data do dilúvio, desconhecida ainda pelas tradições anteriores (Gn 7.11; 8.13; etc), até outras indicações de anos, meses e dias. Os números e os nomes vão, com freqüência, unidos em listas e em genealogias. Estas listas e genealogias provém, por exemplo, de um Toledot ou registro genealógico inicialmente independente, que começa em Gn 5.1 (cf. 6; 9; 10; 1; 11.10; etc), embora P faça uso também do termo em Gn2.4a, para explicar a criação do mundo através de uma “história das origens”.

Também J enlaça distintos relatos mediante genealogias, em uma seqüência narrativa, mas P vem quase a inverter a relação: o relato histórico se reduz muitas vezes como simples genealogia. Sobretudo no que se refere à tradição patriarcal (mais precisamente nos relatos sobre Isaque, Jacó e José) o escrito sacerdotal se mostra muito cauteloso, limitando-se substancialmente a dados genealógicas. Somente dois capítulos, Gn17 e 23, contam pormenorizadamente alguns fatos, e é surpreendente que as fontes escritas mais antigas falte o paralelo de ambas as narrações.

1.3 Preocupação com o Culto

O escrito sacerdotal deve o seu qualificativo à atenção especial que dedica ao culto regulamentado, tanto no que diz respeito ao lugar do culto – o santuário – como a seu objetivo: a manutenção da pureza e da santidade. Ele expõe as normas do culto e mostra interesse pelo sacerdócio encarnado na pessoa de Aarão e nos levitas. Aarão aparece ao lado de Moisés e até funciona como mediador entre este e o povo (Ex 7.1; etc).

O escrito sacerdotal adota uma atitude muito mais livre do que o javista frente às tradições e seu estilo é sem dúvida mais reflexivo teologicamente do que o próprio eloísta. P submete as fontes antigas a um tratamento mais ou menos unilateral, mediante a seleção ou a omissão dos materiais. Faltam em P as narrativas coloridas da história primitiva e patriarcal; ignora, por exemplo, a infância de Moisés e suas relações com Midiã. Faz emendas na história do dilúvio dos patriarcas, partindo do pressuposto de que o culto deve seu início no Sinai. P nada fala do sacrifício de Noé, nem da construção do altar, nem da distinção entre os animais puros e impuros (6.19s; 7.15s P, em oposição à 7.2; 8.20 J). P omite, da mesma forma, as informações sobre o culto na época pré-mosaica, porque contradizem sua idéia de que o verdadeiro sacrifício teve início na revelação sinaítica (Ex 25s) .

2. INDEPENDÊNCIA

Embora o escrito sacerdotal ofereça, às vezes, somente um simples esquema prático, ele foi originalmente um documento independente. Algumas razões para isso:

Existem duplicações entre as duas fontes antigas (JE) e a recente (P) que sugerem a independência original do escrito sacerdotal. Isto se vê, entre outros casos, nos relatos da vocação de Moisés (Ex 3 e 6).

Não tem sido possível determinar com exatidão as relações do escrito sacerdotal com as duas fontes escritas mais antigas.

Os textos sacerdotais se prestam à leitura e oferecem, apesar de certa prolixidade, um conjunto coerente que só se interrompe por pequenas lacunas, devido a relações posteriores.

Os textos do escrito sacerdotal estão conectados entre si por determinados motivos. Assim, a idéia da bênção divina recorre o Gênesis desde a história da criação de até o cumprimento, para continuar com a promessa da terra e da assistência de Deus a seu povo. O escrito sacerdotal formou material sobre o qual se integram as fontes J/E já combinadas. Precisamente porque o escrito sacerdotal era com freqüência sumário e preciso, pareceu conveniente completado com textos mais antigos. Assim, a redação do Pentateuco neutraliza as reservas do sacerdócio frente à tradição.

3. UNIDADE

O escrito sacerdotal apresenta pouca unidade quando é estudado com certo rigor. A linha narrativa de P em Gênesis é quase perfeita, mas no trânsito do o livro de Êxodo aparecem alguns desajustes e até duplicações, mesmo descartando conjuntos extensos (que exibem certa unidade externa), o resto não fica isento de incoerências. Pode se explicar o surgimento do escrito sacerdotal mediante certa hipótese: um texto escrito por sacerdotes, identificável com maior com menor precisão (Pg) foi se ampliando no decurso do tempo com material de todo o gênero (Os ou o incremento secundário), incluindo principalmente o material cúltico-legal, complementos narrativos e dados genealógicos. Esta distinção de diversas capas no escrito sacerdotal (material básico e complementos posteriores), significa que esse texto em sua forma atual não é a obra de um só autor, mas de uma escola, isto é, de um círculo sacerdotal que possuía idéias similares, recorreu a tradições, elaborou-as e as pôs por escrito.

4. SITUAÇÃO NO TEMPO

Dada sua lenta formação literária, não é fácil situar no tempo a redação do escrito sacerdotal. Desde 1875, aproximadamente, prevaleceu a hipótese segundo a qual o códice sacerdotal foi a última fonte escrita e nasceu no exílio. Tal é a opinião corrente. Outros consideram como o mais provável a primeira época pré-exílica (século V a.C.).

As razões principais para se fixar a data tardia dessa fonte foram mais do tipo histórico-cultural do que de caráter lingüísticos:

A centralização cúltica exigida pelo Deuteronômio, segundo o qual o povo de Deus só conhece um santuário, é algo óbvio para o escrito sacerdotal. O Deuteronômio reclama da unidade de culto, e no códice sacerdotal esta unidade pressuposta. O santuário (Ex 25s) é o único lugar de culto legítimo da comunidade das doze tribos antes de Salomão e por isso constitui uma projeção do tempo posterior. Portanto, seria impossível datar o nascimento do escrito sacerdotal antes do aparecimento do Deuteronômio (621 a.C.). Existem, além disso, certos pontos comuns. Não parece obra do acaso que ambos considerem a obra de Moisés principalmente em seu papel de mediador legislativo.

P representa um estágio tardio na história do culto tal como se pode encontrar no antigo testamento. Sobretudo no que diz respeito à data exata das festas, a distinção dos sacrifícios e a hierarquia do sacerdócio (Ex 28ss).

P subistitui o termo “povo” (‘am) por “comunidade” (‘edah), porque, como membro da comunidade pós-exílica, que chegou a ficar estatalmente independente, considerou a vinculação ao santuário como decisivo. A unção e outros símbolos da realeza e se converteram agora em sinais distintivos do sacerdócio (Ex 28ss).

A importância que a circuncisão e a santificação do sábado adquirem no escrito sacerdotal, como “sinais” distintivos da fé javista, só se pode explicar tendo em vista as condições do exílio. Seu uso era desconhecido na era babilônica, e por isso tais práticas puderam se converter em critério distinto em contraste com a religião de outros povos. Segundo escrito sacerdotal, não é Moisés (cf. Ex 4.24ss), mas Abraão que recebe o mandato da circuncisão como sinal de uma “Aliança eterna”. O guardar o sábado se pressente na criação, quando Deus descansa no sétimo dia, o abençoa e o santifica. De qualquer forma, o homem do período original e patriarcal nada sabe ainda do sábado. Israel descobre a peculiaridade do sétimo dia quase que por azar, durante a marcha pelo deserto, conforme o relato do maná. Este não pode ser conservado de um dia para outro, exceto no sexto dia, quando vem em quantidade dupla, para ser usado também no sétimo dia. É inútil trabalhar no sábado (o maná não vem), e assim Israel é levado a guardar o descanso sabático.

A conclusão quanto à questão da data do escrito sacerdotal é que o escrito fundamental (Pg) teria nascido no exílio, enquanto que os complementos (Ps) foram redigidos na época pós-exílica. Como supõe a maioria dos estudiosos e com maior fundamento, presume-se que o escrito sacerdotal foi redigido no círculo dos deportados à Babilônia, para ser enviado mais tarde, talvez por Esdras, à Palestina.

5. LIMITES DA OBRA

O escrito sacerdotal tem seu início e seu primeiro núcleo na história da criação (Gn 1.1-24a). Seu limite final, segundo a opinião mais razoável, encontra-se em Dt 34.7-9. Esta obra histórica, portanto, abarca desde a criação do mundo até a morte de Moisés. Os principais textos de P se encontram em:

  • Gn 1.1 – 2.4a: criação.
  • 6 - 9: dilúvio, aliança com Noé.
  • 17: aliança com Abraão.
  • 23: compra na gruta de Macpela.
  • Ex1.1,5,7,13ss: multiplicação dos israelitas, opressão no Egito.
  • 2.23-25: queixa (resposta de Deus).
  • 6ss: vocação de Moisés, promessa de redenção.
  • 7 – 14: pragas, páscoa, saída, salvação.
  • 16: Murmuração, maná, sábado.
  • 19.1ss; 24.15ss: Revelação no Sinai.
  • 25 – 29: disposições sobre o santuário.
  • Lv 8ss: consagração sacerdotal (cf. Ex 29) e primeiros sacrifícios.
  • Nm 10.11ss: partida do Sinai.
  • 13ss: relatório dos exploradores, incredulidade do povo.
  • 20: Incredulidade de Moisés e Aarão, morte de Aarão.
  • 27.12ss: investidura de Josué.
  • Dt 34.1a, 7 – 9: morte de Moisés.

Esta delimitação de conteúdo nos leva considerar o fato de que o escrito sacerdotal, que sempre reitera a promessa de posse da terra e lhe atribui maior importância do que as outras fontes mais antigas carecem de um relato específico sobre o tema. Só a geração futura entraria na terra, exceto Josué e Calebe (cf. Jr 29.5s, 10). Seria isto um reflexo das condições de vida da comunidade exílica? Pode ser que P pretenda, olhando passado, despertar a esperança para o futuro, segundo o qual a comunidade esperaria a realização da antiga promessa. Na verdade, o escrito sacerdotal nunca apela diretamente à esperança, nem contém, ao menos explicitamente, afirmações escatológicas.

6. INTENÇÕES TEOLÓGICAS

P já foi chamado o livro das 4 alianças. Foi comprovado, contudo, que P só fala de uma dupla aliança, já que ele reserva o termo “aliança” (berit) aos 2 acontecimentos centrais: as promessas divinas a Noé e Abraão. Mas, de qualquer forma, P divide a história em quatro períodos. No começo de cada período registra-se um acontecimento importante, com um ato ritual ou certas disposições sobre o culto religioso:

1.1 A Divisão dos Períodos no Escrito Sacerdotal

Gênesis 1
Criação do mundo (o homem imagem de Deus, dominador da terra).
As plantas como alimento; descanso de Deus no 7º dia.
Elohim = “Deus”

Gênesis 9
Aliança de Noé (humanidade)
Mandatos a Noé: Abstenção do sangue e proibição da morte violenta; o arco-íris como sinal.
Elohim = “Deus”

Gênesis 17
Aliança de Abraão (futuro povo de Deus): promessa de sucessão e de terra; fórmula de aliança, v 7s, Abrão = Abraão, Sarai = Sara, Gn 23, compra de terra.
Exigência de perfeição diante de Deus; circuncisão como sinal.
El Shaddai = “O Deus Todo-Poderoso”

Êxodo 6 e 24.15s
Depois do cumprimento da promessa de descendência (Ex 1.7): Período Mosaico, Sinai.
Páscoa (Ex 12); santificação do sábado (Ex 16; cf. 31.12s). Santuário, prescrições célticas (Ex 25s).
Desde a vocação de Moisés (Ex 6): Javé; no Sinai (EX 25) e depois da construção do santuário (Ex 40; Lv 9): Kabod ou Glória de Javé.

1.2 Orientação Universal

Apesar do grande interesse que demonstram pela comunidade cúltica, tanto escrito sacerdotal como o javista revelam uma discreta orientação universal. A história começa com a criação do mundo. Não somente o israelita, mas o homem em geral é, como criatura imagem de Deus, de certo modo representante de Deus na terra: recebe o encargo de dominá-lo e é objeto de uma bênção especial. A promessa de Deus a Noé afeta todos os homens, embora a segunda promessa aliancista (Gn 17) se dirija a um grupo reduzido: Abraão e seus descendentes.

1.3 O poder de Javé contra os deuses.

P acrescenta o episódio das pragas como um debate entre a religião egípcia e a fé javista com o milagre do mar Vermelho como juízo conclusivo, no qual Javé é glorificado. Como Elias enfrenta os profetas de Baal (1 Rs 18), Moisés e Aarão, na disputa com os magos, enfrentam no nome de Javé uma multidão de adivinhos egípcios. Os magos conseguem algum êxito a princípio, mas são depois superados pelos representantes de Javé, cuja ameaça se torna realidade: “Farei justiça sobre todos os deuses do Egito” (Ex 12.12). É possível que, no fundo, P esteja tentando mostrar a superioridade da fé javista sobre a religião e a feitiçaria dos babilônicos.

1.4 A Glória de Javé

A expressão “cobrir-se de glória” passa a ser, como substantivo “glória de Javé”, a palavra-chave do relato sacerdotal sobre a peregrinação no deserto e sobre a revelação sinaítica. Com a idéia da “glória de Javé”, que a história da saída do Egito havia antecipado (Ex 14). P conecta a revelação sinaítica com a marcha pelo deserto (Ex 16; Nm 14; etc), mostrando que no Sinai se manifesta o Deus que libertou Israel do Egito. As palavras e as ações de Deus no culto que na história se mesclam entre si e não podem ser separadas umas das outras.

1.5 Transcendência

P assume intenções teológicas, que aparecem igualmente no Deuteronômio, quando tenta descobrir a presença de Deus sub a espécie do “nome”. Tal distinção pode provir do afã em falar de Deus evitando tudo que suponha representação, analogia ou manipulação, em consonância com o segundo mandamento. Seja como for, P procura expressar a transcendência de Deus e a manifestação do seu poder no mundo; e, em conseqüência, sua liberdade na revelação. A mesma tendência se observa nos mais diversos contextos. Por exemplo, P emprega um termo próprio para designar a obra criadora de Deus: bará (Gn 1.1; etc), a fim de evitar qualquer analogia com a atividade humana.

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sexta-feira, 19 de março de 2010

Reflexão: Por que somos negligentes? Meras elocubrações...

Por Carlos Chagas (escrito em 10 minutos de minha loucura)

Por que pensar dói? Por que quando alguém pensa sobre nossas ações e expressa tal pensamento isso nos causa angústia ou insegurança? Seria porque sabemos que nossa atitude pode ou está errada? Mas se o pensar nos traz mudanças para melhor, por que proibimos o pensar? Por que a mentira é melhor? Ou porque não quero mudar?
Muitos já pensaram e pensam num mundo melhor. Tais pensamentos geram desconforto, todavia para o bem. Contudo existe o embate: Pensar versus Negligenciar. Muita coisa na vida é negligenciada. Exemplos???

Sobre religião: Melhor é abraçar a ciência bem falada e bem quista que defender uma religião atacada por todos. Mas e quando a ciência for questionada, assim como o foi a religião, pela não resolução dos problemas da vida? Negligenciaremos ela também?

Sobre terrorismo: Cite um terrorista. Primeiro nome a surgir? Bin Laden e talvez um segundo nome: Adolf Hitler. Mas porque o George Bush não está na lista? Seria porque ele lutou contra o terrorismo? Ou porque ele não é terrorista, mesmo após criar uma guerra que perdura por mais de 9 anos (a de Hitler durou 6 anos!!!). Mas muitos dirão: Hitler matou cerca de 50 milhões (50.000.000!!!) e o Bush nem 10% disso. Mas e se minha mãe ou amigo, ou até eu mesmo tivesse morrido nesta guerra Bushiana? E outro problema: Só saberemos o número de mortos no Iraque após o exército americano se retirar de lá.

Sobre o racionalismo: Tudo se explica pela razão. O mundo, segundo os racionalistas modernos (sécs. XVIII e XIX) diziam: “O mundo será melhor com a ciência”. Realmente! Tivemos como melhora: A 1ª Grande Guerra, a 2ª Grande Guerra, a Guerra Fria, a Guerra da Coréia, do Vietnam, do Golfo, do Iraque, sem falar das doenças que já possuem cura mas que o dinheiro fala mais alto. Me explique isso racionalmente? É como já dizia a música dos Engenheiros do Hawaii: “E é tão fácil ir adiante e esquecer que a coisa toda tá errada”.

Sobre as igrejas: Por que mais e mais charlatões entram nas igrejas para enganar os fiéis? É por que eles são safados? Ou porque ele é ungido de Deus e por isso podem fazer de tudo? A culpa não seria dos membros que o aceitam como são?

Sobre a teologia cristã: Por que Satanás é mais forte que Deus? Igrejas dizem sobre os objetos consagrados ao Demônio: “Necessita-se de 7 sessões descarrego... de 3 cultos de libertação... de vigília no monte por 40 dias...”. Mas na ceia, onde o pão simboliza o Corpo e o cálice simboliza o Sangue de Cristo, após terminada, se tornam novamente pão e vinho. A consagração do demônio dura a eternidade, mas a de Deus se desfaz em instantes esquecidos por nós mesmos.

Sobre o trabalho: Por que eu tiro “sarro” da cara do trabalhador que descansa após fazer 16 horas de seu dia só para o serviço dizendo: “Assim o mundo não vai pra frente!”. Seria porque é verdade ou porque eu tenho inveja? Para que trabalhar igual a louco? O mundo vai parar se eu parar?

Sobre a família: Por que eu converso com a maior educação com amigos, mas com a minha mãe eu a trato “com casca e tudo”? Por que eu não valorizo festa de família, mas as “baladas” eu amo?

Aqui, palavras de quem pensa demais e negligencia a sanidade proposta pelo mundo.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Paulo e a lei de Moisés: um estudo sobre as “obras da lei” em Gálatas

Por Augustus Nicodemus Lopes

Desde o seu início, o cristianismo debate-se com uma questão crucial: qual é exatamente a posição da lei de Moisés dentro da nova dispensação da graça? Não se trata de uma discussão teológica sem valor prático. Várias alternativas práticas dependem das respostas. É possível explicar as ênfases éticas e práticas dos calvinistas e dos luteranos a partir da abordagem de Calvino e de Lutero sobre a validade da lei para os cristãos

O debate tem se concentrado historicamente nas cartas de Paulo aos Romanos e aos Gálatas, e mais recentemente na expressão “obras da lei”, que ocorre oito vezes nessas cartas: duas vezes em Romanos (3.20,28) e seis vezes em Gálatas (2.16,3 vezes; 3.2, 5; 3.10) ontem todas essas ocorrências, a expressão ocupa posição central no contexto, usada com uma conotação negativa. Paulo emprega-a cinco vezes para negar que a justificação pode ser obtida por intermédio da lei (Rm 3.20, 28; Gl 2.16) . A expressão também é usada negativamente para se referia aos que estão debaixo da maldição da lei (Gl 3.10). Não é de admirar, portanto, que dentro da interpretação tradicional as “obras da lei“ venham sendo encaradas de forma negativa e entendidas como parte da polêmica de Paulo contra o sistema judaico de salvação por obras e méritos humanos. Ele teria em mente os atos de obediência à o lei de Moisés realizados pelos judeus da sua época com a intenção de obter méritos diante de Deus. Paulo os rejeita, em primeiro lugar, porque nunca foi propósito de Deus que a lei servisse de caminho de salvação, e em segundo lugar, porque o homem é totalmente corrompido e fraco, devido ao pecado, e, portanto, incapaz de cumprir as exigências da lei. Assim, para Paulo, ninguém pode se justificar pelas “obras da lei” simplesmente porque ninguém é capaz de fazer tudo o que a lei exige.

Essa interpretação, que por muito tempo dominou a área de estudos paulinos, começou a ser contestada recentemente de forma séria por vários estudiosos. Depois dos artigos de Krister Stendhal e Werner Kümmel, a obra que possivelmente mais tem contribuído para uma mudança de perspectiva sobre judaísmo e Paulo é o livro de E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism. Partindo de suas pesquisas exaustivas em material rabínico, Sanders argumenta que o judaísmo da Palestina na época de Jesus e Paulo não era uma religião legalista, preocupada em acumular méritos diante de Deus; antes, era uma religião baseada na graça de Deus revelada nas alianças com Israel, especialmente no Sinai. Portanto, longe de ser legalista, que o fariseu da época de Jesus e de Paulo já se considerava, por nascimento, dentro da graça da aliança. Sanders, então, conclui que o padrão religioso do judaísmo palestino não era “Legalismo”, mas “Nomismo Pactual”. Partindo dessas premissas, Sanders conclui que o assunto em discussão em Gálatas “Não esse pessoas podem acumular méritos suficientes para ser absolvidas no juízo; antes, o que se discute é a base sobre a qual os gentios podem ser incluídos no povo de Deus”.

O trabalho de Stendhal e Sanders, entre outros, têm influenciado de forma decisiva debate atual da perspectiva de Paulo sobre a lei. Percebe-se uma mudança na abordagem de vários estudiosos na direção de uma percepção mais positiva e menos crítica do judaísmo, dos judeus e da lei. Como conseqüência, Paulo tem sido visto de forma negativa, como detentor de uma perspectiva distorcida da religião dos seus pais, ou mesmo como mal-intencionado em sua maneira de caricaturar de condenar o judaísmo. E o que é ainda mais sério, a polêmica de Paulo contra as “obras da lei” é lançada no vácuo, já que, segundo a “nova perspectiva”, ninguém no primeiro século estava dizendo que a salvação era por obras – muito menos os judeus. Como explicar, então, o ataque consistente de Paulo contra as “obras da lei”, especialmente em Gálatas? Segundo os exegetas da “nova perspectiva”, ou Paulo entendeu mal o judaísmo da sua (Schoeps), ou então não estamos entendendo bem Paulo (Sanders, Stendhal); ele realmente nunca foi contra as “obras da lei” como um caminho falso de salvação, como Lutero e outros reformadores disseram, e suas críticas à lei, às “obras da lei”, e ao judaísmo precisam ser interpretadas de maneira diferente da tradicional.

Entre as novas interpretações que surgiram, a abordagem sociológica de James Dunn tem recebido vasta aceitação. Para ele, Paulo ataca as ”obras da lei” não porque elas expressam o desejo de alcançar mérito por parte dos judeus – mas porque entende que elas fazem distinção entre judeus, o povo de Deus da antiga dispensação, e os gentios, a quem o evangelho está sendo oferecido. As “obras da lei” que Paulo identifica como restritas à circuncisão , às leis sobre alimentos puros e impuros e os dias especiais do calendário judaico, são emblemas que caracterizam o judaísmo e devem ser rejeitadas porque enfatiza a separação entre judeus e não-judeus, a qual Cristo veio abolir.

A carta chave de todo esse debate é Gálatas, e é nela que veremos se a tese de Dunn pode ser substanciada exegeticamente. Na discussão que se segue, estaremos preocupados apenas com a questão: Por qual motivo Paulo rejeita as “obras da lei”? É porque elas fazem parte do sistema legalista do judaísmo da sua época, sendo incompatíveis com a salvação pela graça, mediante a fé em Cristo (interpretação tradicional)? Ou simplesmente porque fazem distinção entre judeus e gentios (nesse caso, interpretação tradicional estaria precisando de revisão)?

O significado de “obras da lei” em Gálatas está essencialmente ligado algumas questões introdutórias sobre a carta, especialmente o propósito dos oponentes de Paulo na Galácia. Segundo Paulo, pregavam “outro evangelho” com a intenção de “perverter o evangelho de Cristo” (1.6-7). Aparentemente, estes pregadores estavam mimando a autoridade Paulo como apóstolo, com o objetivo de resgatar os gálatas de debaixo de sua influência e assim ganhar-lhes a atenção (4.17).

A identidade desses oponentes de Paulo tem sido bastante debatida. Aparentemente eles pertenciam à facção farisaica da igreja de Jerusalém, conhecida como “os da circuncisão” devido ao seu ensino enfático sobre a necessidade da circuncisão para a salvação dos gentios (At 11.3; 15.1-5; Gl 2.1-5,11-13; 6.12-13). A julgar pelo que Paulo menciona, eles já haviam obtido algum sucesso (1.6), pois alguns dos gálatas já estavam guardando os dias santos do calendário judaico (4.9) e outros estavam prestes a se deixar circuncidar (5.2-3). Em resumo, eles estavam o abandonando o evangelho pregado por Paulo e adotando um tipo de religião judaico-cristã com fortes tendências legalistas, que requeria as “obras da lei” em acréscimo à fé em Cristo (2.16; 3.10; 4.8-11; 5.2-3).

Alguns estudiosos têm sugerido que, exigindo essas coisas, os “judaizantes“ estavam no tratando apenas da questão de “Como se tornar um herdeiro completo de Abraão” (3.29; 4.1-7,30) o mesmo propondo um caminho mais excelente de perfeição cristã (3.1-5). Dunn tem mesmo avançado a hipótese que, de acordo com 2.15-16a, o judaísmo do primeiro século sabia que a salvação era pela fé e não por obras da lei e, portanto, o que estava em jogo na Galácia não era a justificação. Entretanto, transparece da carta aos Gálatas que, para Paulo, o que estava prestes a ocorrer com os destinatários era uma questão de vida ou morte. Se eles se submetessem às exigências daqueles pregadores, estariam abandonando o verdadeiro evangelho, renegando a graça de Deus, anulando a obra de Cristo, colocando-se debaixo da maldição da lei e decaindo da graça. Pouca dúvida resta de que, para o apóstolo, o que estava sendo ameaçado era o próprio conceito de justificação. É este o assunto que o preocupa, mesmo quando aborda a questão da herança de Abraão, incluindo a promessa do Espírito (3.6-9,29; 3.26 com 4.5-7; 3.4; 3.1-2 com 4.6; Ef 1.13).

Esse ponto torna-se ainda mais claro quando observamos em que sentido Paulo usa a palavra “Lei” em sua argumentação contra a mensagem dos seus oponentes. Na maioria das 30 vezes em que ele a usa em Gálatas, ele se refere à lei de Moisés e, dessas, 16 vezes a referência é claramente à lei de Moisés como um todo (2.6,19,21; 3. 2,5, 10,13,17-19; 4.21a; 5.3-4,18; 6.13), quatro vezes à administração sinaítica do Antigo Testamento (3.23-25; 4.4; 5.14). É seguro concluir que Paulo usa “lei” em Gálatas principalmente para referir-se ao corpo de regulamentos dados por Deus à Israel mediante o Moisés no Sinai, e como tal é elaborada pelo apóstolo nessa carta, não em sua função social e nacional como emblema do judaísmo, mas como o conjunto de requerimentos legais de Deus sobre os judeus, os quais seus oponentes queriam impor aos gentios. Notemos que Paulo menciona a lei apenas no que se refere à relação do homem com Deus (teológica), não quanto à identidade nacional de um povo (sociológica). Assim, é evidente pela forma como Paulo usam “nômos” que a expressão “obras da lei” refere-se às obras realizadas em obediência à lei com propósito salvífico.

É possível que Dunn esteja certo ao afirmar que Paulo, em Gálatas 2.16, tem em mente apenas os preceitos da lei enfatizados pelos seus oponentes, não a lei como um todo. O que estaria em discussão era principalmente a circuncisão (2.3) e as leis cerimoniais de alimentos puros e impuros (2.12). Dunn observa corretamente, em minha opinião, que estes dois preceitos da lei, juntamente com a observância dos dias especiais do calendário judaico (principalmente o sábado), eram as principais características do judaísmo do período do segundo templo, os “Emblemas” da religião judaica. Em outras palavras, se perguntassem à qualquer pessoa do primeiro século o que era um judeu, a resposta provavelmente incluiria a menção de todos ou de alguns desses elementos. Não é de admirar, portanto, que os adversários de Paulo estavam insistindo nesses pontos, em sua catequese dos crentes gentílicos da Galácia.

Embora essa sugestão de Dunn seja atraente, é mais provável que Paulo esteja usando a expressão “obras da lei” um sentido mais amplo em 2.16, como uma conclusão generalizada. Longenecker, que prefere essa possibilidade, acha que Paulo usa “obras da lei” para sinalizar “todo o complexo legalista de idéias relacionadas com o adquirir do favor divino pelo acúmulo de méritos mediante observância da Torá.

Essa interpretação mais ampla de “obras da lei” em 2.16 é confirmada em 3.10: “Todos quantos são das obras da lei estão debaixo de maldição, porque está escrito: ‘Maldito todo o que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei para fazê-las’”. Ser das “obras da lei” implica cumprir toda a lei – e isto representa mais que os mandamentos sobre circuncisão, alimentos e dias santos.

Algumas versões na língua inglesa introduziram em 3.10 a expressão “confiam” antes de “obras da lei” (“malditos que confiam nas obras da lei”), refletindo o sentido óbvio do pensamento de Paulo (NVI, RSV; veja também Philips). Mas nem todos estão satisfeitos com essa interpretação. Dunn, de forma característica, entende que os que são das “obras da lei” não são necessariamente os legalistas, mas “todos os que restringem a graça e a promessa de Deus sob aspectos nacionalistas”. Outros, como Braswell, tomam a expressão num sentido bem mais amplo, referindo-se aos judeus em geral, desde que, para Paulo, eles eram o único povo debaixo da lei de Moisés. Esta idéia, entretanto, minimiza a força da expressão “todos quantos“ que aponta para os que são das “obras da lei” como um grupo específico, em contraste com os que são “da fé”, no v.9. Portanto, a referência em 3.10 não pode ser os judeus como um todo, mas aos que dentre eles confiavam numa observância legalista da lei como caminho para a vida.

Podemos ainda apelar para outro argumento, que fortalece interpretação tradicional. A citação de Paulo neste versículo (3.10) e de Deuteronômio 27.26. Paulo segue aqui a Septuaginta, que adiciona ao texto hebraico original “todo o homem” e “ todas” antes de “as coisas escritas no livro da lei”. Por que Paulo preferiu seguir a Septuaginta nessa citação e não o Texto Massorético? Provavelmente porque a Septuaginta, ao expandir o texto hebraico durante a tradução, dando-lhe uma ênfase mais universal e qualificando a lei como um conjunto de requerimentos, serve melhor o argumento do apóstolo a essa altura. A citação deliberada da Septuaginta, neste contexto, é mais uma indicação de que, para Paulo, “os que são das obras da lei” eram os que confiavam na obediência à lei de Moisés como o caminho para obter o favor divino.

Abordemos o assunto de outra perspectiva. Devido ao caráter polêmico da Epístola, Paulo sempre contrasta a expressão “obras da lei” com outras expressões, o que indiretamente nos fornece indicações do seu significado para o apóstolo. Em 2.16, por exemplo, Paulo duas vezes coloca “obras da lei” em paralelismo antitético com “fé em Cristo Jesus”. O sentido exato dessa frase tem sido amplamente debatido em vista da sua sintaxe ambígua. Trata-se de um genitivo subjetivo ou objetivo? A maioria dos exegetas tem optado por um genitivo objetivo, “fé em Jesus Cristo”. Entretanto, reconhecemos que mesmo a tradução “fé de Jesus Cristo” Não alteraria de forma significativa o argumento de Paulo, quando contrasta a expressão com “obras da lei”. A questão permanece a mesma: não é por praticar as obras requeridas pela lei que alguém é salvo, mas pela dependência em Deus, em Jesus Cristo como Salvador.

Tal contraste entre obras e fé, que também aparecem em outros escritos de Paulo (cf. Rm2.20,28; 3. 8,24; 4.5; 5.1; Ef 2.8-12; 3.2; Fp 3.9), em Gálatas faz parte do contraste maior que Paulo está fazendo entre as mensagens dos seus adversários e o evangelho genuíno que ele prega. Esse contraste é apresentado de várias formas: carne e Espírito (3. 2,5; 5.18-25), Agar e Sara (4.21-31), a aliança feita mediante Moisés e a promessa foi feita à Abraão (3.15-22). Em todos esses casos, temos a impressão de que Paulo está estabelecendo claramente a diferença fundamental entre as duas mensagens: a tentativa de merecer a absolvição divina pelo amontoar de méritos em contraste com a recepção simples dessa a absolvição mediante a fé em Cristo Jesus. Como parte desse contraste abrangente, as “obras da lei” são entendidas como uma execução legalista do requerimentos da lei de Moisés.

Outra expressão usada por Paulo em contraste com “obras da lei” é “ouvir com fé” (duas vezes em 3.1-5). Nessa passagem, Paulo argumenta com os gálatas, com base na experiência deles no passado e no presente, que a recepção do Espírito e a sua atuação poderosa entre eles decorriam não das “obras da lei”, mas do “ouvir com fé” (3. 2,5). A expressão também não é fácil de traduzir, porque mais uma vez temos um genitivo que pode ser tanto subjetivo quanto objetivo de duas palavras que podem comportar várias traduções diferentes (embora relacionadas), hakoé e Pístis. Entretanto, independentemente da tradução adotada, o argumento de Paulo permanece invariável. Em última análise, o contraste entre “obras da lei” e “ouvir com fé”, conforme Hays afirma, estabelece a ambos como alternativas mutuamente exclusivas, que destacam a diferença e a justaposição entre a atividade humana e a atividade divina.

Em 3.9-10, Paulo coloca “esqueçam das obras da lei” em correspondência antitética com os que são “Da fé”. Essa passagem pertence ao argumento final de Paulo, de que Abraão foi justificado pela fé e de que Deus prometeu abençoar todas as nações em sua descendência (3.6-8). Os que são ek písteos (v.9) são abençoados com o crente Abraão, ao passo que os que são ex ergon nomou são malditos pela lei. Se pudermos ler aqui o argumento de Paulo em 3.16-18, o contraste entre esses dois grupos torna-se mais claro. Os que são “da fé” são justificados como Abraão, sem as “obras da lei”. No caso de Abraão, a lei não havia sido dada ainda. O outro grupo, os das “obras da lei”, justificam-se pela lei de Moisés, que veio 430 anos após Abraão. O contraste é soteriológico. As “obras da lei” aqui, bem como em toda a carta, referem-se a obras realizadas em obediência à lei de Moisés com propósito meritório.

Praticar as “obras da lei” em 2.16 tem ainda um paralelo em 2.21, a “justiça mediante a lei”, que Paulo coloca em irreconciliável oposição aos efeitos da morte de Cristo. O contexto e a semelhança das duas expressões autorizam-nos a estabelecer o paralelo. O resultado é que praticar as “obras da lei”, por inferência, é incompatível com os propósitos da morte de Cristo. Para que a justaposição no versículo 21 entre a morte de Cristo e a justiça mediante a lei seja válida, é necessário que esta última seja entendida como atividade humana, padronizada pela lei, desde que a morte de Cristo, como Paulo geralmente indica, é resultado da iniciativa e da atividade de Deus com o objetivo de salvar pecadores (Gl 4.4-5; Ef 1.7-8; Cl 1.19-20; Rm 3.25-26).

Em conclusão, esperamos que nossa rápida pesquisa tenha demonstrado que o ataque de Paulo às “obras da lei” em Gálatas faz parte de sua polêmica mais geral contra o sistema legalista e inadequado do judaísmo palestino, como uma religião de méritos e em direta oposição ao evangelho da graça revelado em Cristo, conforme tradicionalmente se vem afirmando. Embora a ênfase de Dunn na função sociológica da lei nos desafie a ampliar nossa interpretação e incluir também este aspecto na polêmica de Paulo contra as “obras da lei” em Gálatas, sua tese fundamental, bem como muitas teses da “nova perspectiva” sobre o judaísmo e Paulo, não pode ser aceita senão debaixo de severas restrições e qualificações. Portanto, desde que não conseguimos ser convencidos por elas, resta-nos permanecer com a interpretação tradicional, que, mesmo parecendo antiquada e indefensável para muitos, continua refletindo mais exatamente a intenção de Paulo ao afirmar que a salvação é pela fé, sem as “obras da lei”.

Sobre Augustus Nicodemus: Natural da Paraíba, é pastor presbiteriano, teólogo calvinista e escritor. É considerado um dos grandes teólogos brasileiros de linha conservadora. É formado em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Norte, de Recife, mestre em Novo Testamento pela Universidade Reformada de Potchefstroom (África do Sul), doutor em Interpretação Bíblica pelo Seminário Teológico de Westminster (EUA), com estudos no Seminário Reformado de Kampen (Holanda). Foi professor e diretor do Seminário Presbiteriano do Norte (1985-1991), professor de exegese do Seminário José Manuel da Conceição (JMC) em São Paulo, professor de Novo Testamento do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (1995-2001), pastor da Primeira Igreja Presbiteriana do Recife (1989-1991) e pastor da Igreja Evangélica Suíça de São Paulo (1995-2001). Atualmente é chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pastor da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro, em São Paulo, SP.

quarta-feira, 17 de março de 2010

A formação dos escritos do Antigo Testamento: A Obra Histórica Eloísta

Elaborado por: Súsie Helena Ribeiro e Dalton Said Henriques

O javista foi o primeiro a colocar por escrito um esboço do Pentateuco. Mas não ficou aí a exposição da história primitiva de Israel. A obra foi completada por outra redação, a eloísta, tão bem amalgamada com a javista que se chegou a falar de uma “iehovista” J/E. A partir da história de José e principalmente do Êxodo torna-se difícil delimitar as fontes.

1. INDEPENDÊNCIA

Dada essa dificuldade, o eloísta tem sido tema de debate, com respeito a seus limites, e até mesmo quanto a sua existência. Contudo, há diversas razões que parecem justificar a consideração do eloísta como relator independente:

Existe uma série de duplicação do mesmo material, especialmente as passagens sobre a tentação de Eva (Gn 20 E; 12.10ss J.26.7ss J) e da fuga de Hagar (21.9ss E; 16.1ss J).
Há relatos paralelos onde se mesclam as relações javista e eloístas. Os exemplos principais são o sonho de Jacó (Gn 28.10ss) , a vocação de Moisés (Ex 3), a teofania do Sinai (Ex 19.16ss) e a perícope de Balaão (Nm 22-24 ).

Nesses textos principais da divisão das fontes coincide com um critério decisivo: o emprego do nome de Deus “Elohim” em lugar de “Javé”. Existem ainda outros argumentos secundários:
A obra histórica eloísta se caracteriza às vezes por certas peculiaridades estilísticas e até, em menor medida, pelo uso de determinadas expressões. Por exemplo: a forma de Deus chamar certas pessoas e sua resposta (“Fulano, fulano: eis-me aqui!”, com certas variantes); a expressão, em textos soltos, “Sou eu Deus?” (Gn 30.2; 50.19); o Moisés “Tirou o povo” (Ex 3. 10,12; 19.17). Em vez de usar o topônimo “Sinai”, o eloísta prefere “Monte de Deus” (Ex 3.1b). São ainda típicos os usos dos nomes “Jetro”, dado ao sogro de Moisés, e do título de “Faraó”, em vez de “Rei do Egito”.

Às vezes, certas reflexões constituem olhadas retrospectivas e antecipatórias da ação ou do evento, ligando o passado ao futuro. Assim a conclusão do relato de José em Gn 50.20 (preparado em 45. 5,7) interpreta a posteriori o destino de José e se projeta mentalmente à seguinte perícope (Ex 1.15ss), onde o propósito de Deus de preservar seu povo com vida se manifesta através das parteiras. Há, portanto, uma independência temática objetiva entre diversas unidades textuais. Com efeito, Gn 50.20 parece possuir uma função articuladora dentro de uma exposição eloísta. As palavras de José põem fim à história familiar da época patriarcal e se introduzem na história do povo israelita.

Certas peculiaridades nas afirmações éticas e teológicas só se podem compreender como conseqüência daquelas reflexões. Vejamos três exemplos que ilustrem a delicadeza do caráter ético do eloísta: enquanto que o javista descreve a Abraão proferindo uma mentira oficiosa, dizendo que sua mulher sara é sua irmã (Gn 20:11ss; cf. 26.7ss), o eloísta, para não manchar a imagem do patriarca com uma mentira, apresentação a como sua meio irmã e enfatiza expressamente a verdade dessa circunstância (Gn20. 2,5,12). José segundo relato javista, é vendido aos ismaelitas (Gn 37.27,28b), mas segundo o eloísta ele é deixado “simplesmente” numa cisterna e ali é retido por algum tempo, até que alguns comerciantes medianitas o encontram e o levam consigo (Gn 3.22-24,28a,29). Segundo Gn 16.6 J, Abraão despede a Hagar por sugestão de Sara; segundo Gn21.11ss E, ele o faz por ordem divina, e lhe concede uma provisão de víveres. Entre as peculiaridades teológicas inclui-se o amplo tema do amor a Deus.

Razões diversas contribuem para que se possa afirmar a independência original do eloísta. De qualquer forma, só existem fragmentos soltos dessa fonte escrita, já que o redator que unificou J e E só aproveitou a obra eloísta como complemento a obra javista, que tomou por base.

2. EXTENSÃO

Apesar desse processo desfavorável para E (que acabamos de mencionar), foram conservados alguns relatos completos dessa obra histórica. O conjunto mais extenso, onde melhor se observa o seu estilo de trabalho, é Gn 20-22. Mas incerto o ponto inicial. Nada do E aparece em Gn 12-19, exceto, talvez, alguns traços duvidosos em Gn 15. De qualquer forma, seu verdadeiro começo não foi conservado, em contraste com a introdução solene do escrito sacerdotal em Gn 1 e do javista em Gn 2.4bs. Teria ele começado com a história de Abraão? Nenhum traço do eloísta foi encontrado ainda em Gn 1-11. Sendo assim, ele não inclui uma história primitiva, mas começa com a era dos patriarcas.

Não existe unanimidade sobre o final da obra eloísta. Alguns o situam em José 24, outros em Dt 31ss. Costuma-se identificar o último texto eloísta de envergadura na perícope de Balaão (Nm 22ss). Entre os textos atribuídos com mais ou menos certeza a E se encontram os seguintes:

  • Gênesis 15: vocação de Abraão.
  • Gênesis 20.1-22.19: Abraão e Abimeleque, nascimento de Isaque, expulsão de Hagar e sacrifício de Isaque.
  • Gênesis 28.11,17-20s: o sonho de Jacó sobre escada do céu, partes de Gn 30-33; 35 (especialmente os versos 1-5,7-); 37.40-42 (na maior parte); 47.
  • Gênesis 46.1b-5ª: revelação a Jacó.
  • Gênesis 45.5b-15; 50.15-26: perdão de José.
  • Êxodo 1.15s: desobediência das parteiras. Talvez também 2.1-10.
  • Êxodo 3.s: vocação de Moisés (mais exatamente 3.1b, 6,9-14).
  • Êxodo 14: o milagre do mar vermelho (especialmente 13.17-19,14.5a,19a).
  • Êxodo 18: encontro de Moisés com seu sogro: sacrifício comum, instituição dos juízes.
  • Êxodo 19: revelação do Sinai (especialmente 19.seu,19; também 24.9-11).
  • Números 22: Balaão.

É possível que alguns textos, entre eles Êxodo 20.18-201 e as partes de Êxodo 32, sejam acréscimos no estilo eloísta ou deuteronômico. É muito importante, para determinar a teologia do eloísta, saber se certos textos, como Gn 15.6; Ex 32; Nm 12.6s ou inclusive o decálogo e o código da aliança (Ex 20-23), pertencem ou não a eloísta. Para emitir um juízo seguro, é preferível delimitar um mínimo de textos seguros.

3. SITUAÇÃO

Há bastante unanimidade acerca do lugar e tempo de origem do escrito eloísta. O lugar, segundo indícios, é o reino do norte, Israel. Na história patriarcal faltam as narrações concernentes ao sul, oferecidas pelo javista; por exemplo, o ciclo das histórias de Abraão e Ló. Tampouco é Judá o porta-voz na história de José, como em J, mas Rubem, segundo um estágio tradicional anterior (Gn 37.22-24,29s e com 37. 21,26s J). Parece haver certas relações da obra eloísta com os profetas do norte, talvez com Elias, mais claramente com Oséias (Ex 3.14 com Os 1.9; também Ex3.10s com Os 12.14) e com o Deuteronômio, cujas tradições mais antigas vêm aparentemente do norte.

Quanto à data, a opinião comum é que ela se encontra entre divisão do Reino, em 926 a.C., e o surgimento do profeta Oséias, ou seja, antes do perigo assírio o, que o eloísta não parece conhecer ainda. A data, portanto, fica ao redor de 800 a.C. Nesse marco histórico-temporal encaixa-se bem a situação cultural. Tanto o escrito eloísta quanto à mensagem de Oséias chegaram ao sul depois da destruição do reino setentrional em 722 a.C. Ali, talvez em Jerusalém, E foi unificado com J. As diferenças e as semelhanças entre J e E se explicam pelo relacionamento original existente entre eles através da tradição oral.

4. INTENÇÕES TEOLÓGICAS

O fato de que o eloísta não contenha uma história das origens e implica na ausência da orientação universal do javista. Javé não está atuando desde a criação do mundo. Ele se revela somente a vocação de Moisés (Ex 3). O eloísta se ocupa exclusivamente do povo de Israel de sua missão particular, o que se confirma pelas palavras de Balaão: “É um povo que eu tinha separado, e não se encontra entre as nações” (Nm 23.9). Esta frase contém um testemunho antigo de autoconsciência de Israel. Não se pode dizer que o eloísta seja particularista, pois ele demonstra, na verdade, tendências contrárias.

4.1- O uso do nome Elohim

Como é possível que E use normalmente, em lugar do nome próprio “Javé”, o termo geral “Elohim”, com ou sem artigo, sem especificação de significado? E isto no reino setentrional, ao redor de 800 a.C., numa situação em que, em sintonia com os episódios de Elias e a pregação de Oséias, se deu um duro enfrentamento entre Javé e Baal. Não é fácil produzir uma explicação satisfatória para o fato de que essa fonte evita o nome específico do Deus de Israel. A razão mais provável para uso do termo “Elohim” é a intenção de enfatizar a transcendência de Deus e indiretamente um certo universalismo da própria fé: Javé, o Deus de um povo, é Deus pura e simplesmente. No confronto entre Baal e Javé, nos dias de Elias, a idéia básica ficou em evidência: “Só Javé é Elohim” (1 Rs 18.29).

4.2- A transcendência de Deus.

O eloísta tem uma surpreendente tendência a destacar a transcendência de Deus. Ele não inclui certos relatos sobre encontros diretos entre Deus e o homem (como os de Gn 3.18.s J). Deus guarda distância: ele “fala” com Abraão (Gn 22.1) sem se fazer referência a uma verdadeira aparição, ou “Chama” a Moisés (Ex 3.4b) como alguém que está longe, sem se precisar de onde vem a chamada. Deus parece habitar no céu quando, nos relatos dos patriarcas, envia de lá seus mensageiros à terra ou estes lhe dirigem a palavra. Deus se faz representar por seu mensageiro no plano do mundo visível, e assim não se faz acessível diretamente (Gn28.12 E com 28.13 J). A realidade divina tampouco se pode “objetivar”, quando Deus, no período pré-mosaico, aparece em de sonhos (Gn20.3s; 28.12; etc). Ambos modos de revelação, mediante mensageiros e sonhos, podem ser combinados (3.11; 28.12). Deste modo, os sonhos não possuem um peso específico próprio, mas são utilizados com uma intenção teológica e quase como um recurso literário para permitir a Deus falar. O decisivo não é a visão, mas as palavras (Gn20.3, 6; etc). O relato da vocação de Moisés é quase exclusivamente um diálogo. Também na atividade de Moisés aflora a intenção do eloísta: enquanto que para J a libertação do Egito é façanha de Javé, para E é o próprio Moisés que tira o povo do Egito, a fim de evitar um contato direto entre Deus e o homem (3.10,12; cf. 19.17). Deste modo, observa-se no eloísta maior capacidade de reflexão teológica do que no javista.

4.3- Fidelidade e temor a Deus.

O eloísta denota de modo mais direto, em seus conceitos, uma intenção teológica. Um tema que se repete nas mais diversas narrações é a prova de fidelidade a Deus a que o homem é submetido. O tema da tentação, já presente em Gn 20.11, é acolhido e desenvolvido no relato do sacrifício de Isaque com outra orientação. Essa lenda cúltica de origem pré-israelita sobre a substituição do sacrifício de crianças por um sacrifício animal (v.22) é interpretada pelo eloísta como uma prova de fé: “Deus provou Abraão” (v.1); este, temente a Deus, está disposto a devolver a seu dono o dom prometido e concedido, e a confiar em sua assistência sem reservas. Foi também por temor a Deus que as parteiras recusaram obedecer à ordem desumana de Faraó, de matar os meninos israelitas recém-nascidos, e realizam, deste modo, sem saber, os desígnios de Deus de “manter com vida um grande povo” (Gn 50.20).

Pratica-se o temor a Deus de modo diferente nas distintas situações: na obediência do crente (22.12), o abandono à sua palavra (42.18; Ex 18.21), ou protegendo o desamparado, seja estrangeiro (Gn 20.11) ou o recém-nascido (Ex 1.17, 21; cf. 20.20). O temor a Deus implica a religião e a ética, a fé em Deus e o comportamento para com o semelhante em uma união indissolúvel.

A exposição eloísta talvez aspirasse à exemplaridade apelando ao temor a Deus na polêmica de Israel com a religião Cananéia. Nesse caso, pareceria mais lógico apelar ao “Temor a Javé” em vez de ao “temor a Deus” em geral. É possível que decorrentes sapiencial familiarizou ao eloísta com a expressão "temor a Deus". Uma sentença como o "temor de Deus aparta o mal" (Pv 16.6) parece expressar diretamente a intenção dos relatos eloístas. O eloísta poderia estar assumindo a tradição sapiencial junto com a profética, antecipando a combinação posterior da profecia com a sabedoria.

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