segunda-feira, 22 de março de 2010

A formação dos escritos do Antigo Testamento: A Obra Histórica Deuteronomista PARTE 2/2

Elaborado por: Súsie Helena Ribeiro e Dalton Said Henriques 

1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

Martin Noth, levado pelas idéias que expressou em seu comentário ao livro de Josué em 1938, propôs a hipótese de uma obra histórica Deuteronomística (deuteronomista), englobando desde o livro de Deuteronômio até o segundo livro dos Reis (Uberlieferungsgeschichte Studien [Estudos da Tradição], 1943, 1957. Jepsen, trabalhando independentemente, chegou a conclusões semelhantes (Die Quellen des Konigsbuches) [As fontes dos livros dos Reis, 1953].

Anteriormente estes livros históricos veterotestamentários eram explicados de modo similar ao Pentateuco, considerando-se que as fontes escritas já ofereciam certas narrativas. Não se ignoravam as passagens deuteronômicas do livro de Josué e dos Reis, que chamam a atenção por sua linguagem característica nas expressões e no estilo. Porém essas passagens eram consideradas como adições de redação a um complexo narrativo já preexistente. Somente no livro dos Reis foi atribuída a essa redação, em maior medida, a seleção e readaptação do material tradicional.

Martin Noth atribuiu ao Deuteronomista a autoria de todo esse complexo literário. Esse autor criou uma obra (de maneira similar ao javista?) “Que não se conhece igual ao seu mundo cultural. Ela engloba ao redor de sete séculos de história israelita, desde a época mosaica até o exílio Babilônico; reelabora com grande esmero tradições literárias e feitos vividos diretamente, e chega assim a uma concepção de assombrosa unidade” (Das Kerygma des deuteronomista Geschichtswerk,1973, p. 308).

Antes da obra deuteronomística não existiu um projeto histórico que abarcasse, de forma ininterrupta, todos esses séculos. Existiam, sim, relatos soltos de ciclos narrativos, como as compilações do tempo de Josué e dos Juízes, ou episódios de períodos parciais, como a história da ascensão de Davi e da sucessão ao seu trono em 1Sm 16 a 1Rs 2. Também eram independentes os ciclos de relatos de Elias e Eliseu, em 1Rs 17 a 2Rs 13, e outras narrações proféticas. Além disso, a obra resume materiais de gênero diverso: tradições de santuários ou da corte, listas, por exemplo, de funcionários (2Sm 8.16s; 20.23; 23.8; 1Rs 4), extratos de crônica, etc.

Segundo Noth, há duas razões que justificam a existência de uma obra literária completa desde o Deuteronômio ou de Josué até 2 Reis:

Aparece com certa clareza o conjunto e a conexão da cronologia (cf. como indicação sumária 1 Rs 6.1 a construção do templo salomônico no ano 480 depois da saída do Egito).

Reflexões são introduzidas nos pontos históricos decisivos, às vezes em forma narrativa, outras vezes como palavras do personagem principal. Essas reflexões não acrescentam propriamente novos dados. Em vez disso, elas procuram interpretar a história e emitir juízo sobre ela. Expressam pontos de vista similares sobre a teologia da história e manifestam o mesmo estilo característico. Tais inserções constituem uma espécie de sermões, uma espécie de discurso que poderia haver-se inspirado na pregação profética. Vejamos um esboço incluindo o começo, as inserções e o final da exposição histórica deuteronomística:

1.1 O Tempo de Moisés

Dt 1 – 3 (4): Moisés evoca a peregrinação desde Horebe até o leste do Jordão; designação de Josué como seu sucessor.

Dt 31.1 – 8; 34: Discurso de despedida de Moisés, investidura de Josué, morte e sepultura de Moisés.

1.2 O Tempo de Josué

Js 1 e 23 – (24): Começo e fim da conquista do oeste do Jordão.
1: Entrega da liderança a Josué.
12: Resultados da conquista do país.
21.43 – 45: Nota final de cumprimento da promessa.
23: Discurso de despedida de Josué.
24.28s; Jz 2.6s: Morte e sepultura de Josué (cf. Dt 34.5s).

1.3 O Tempo dos Reis

2Sm 7: Instruções de Natã (elaboração deuteronomista, com consideração retrospectiva v.1) 1Rs 3 e 9: Revelações de Deus a Salomão
1Rs 8 (v.14s): Oração de Salomão na consagração do Templo. 1Rs 11 – Apostasia de Salomão
2Rs 17: Queda do reino Setentrional (juízo retrospectivo, v. 7 – 23).
2Rs 25: Destruição de Jerusalém (breve juízo 21.10s; cf. 22.16s; 23.26s).

1.5 Distribuição da Obra Histórica

A distribuição da obra global nos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis é tardia, e coincide, somente ao princípio (no tempo de Moisés e de Josué). Com as inserções previstas originalmente.

Contudo, a divisão atual parece ter surgido muito cedo, já que o final do livro de Juízes e do segundo de Samuel (Jz 17 – 21; 2Sm 21 – 24), e talvez também ao começo dos Juízes (Jz 1), existem pressumivelmente apêndices que interrompem o conjunto das narrações originais. Ao contrário, a bipartição dos livros de Samuel e dos Reis é conhecida desde os tempos medievais tardios.

O conteúdo indica o limite superior da época do nascimento da obra: parece ser que ela foi escrita depois dos últimos acontecimentos descritos em 2Rs 25.27-30 (o sucessor de Nabucodonosor, Evil Merodac [562-560, livra da prisão e acolhe em sua corte o rei Jeconias de Judá]), provavelmente durante o exílio ao redor de 560 a.C. Pelo menos o fundo básico não ultrapasse essa data. Com efeito, não se menciona e nem sequer se alude à mudança radical que o período persa trouxe consigo (desde 539 a.C.). O lugar da composição é discutível, mas (como no caso das Lamentações) parece ter sido a Palestina, não o território babilônico (foi composto o escrito sacerdotal). Talvez ela se deu Mispá, que alcançou uma certa importância depois da destruição de Jerusalém (2Rs 25.22s).

Diversas observações nos obrigam a emendar as idéias de Noth num ponto: não houve um autor deuteronomista solitário, mas uma escola Deuteronomista. Deste modo, explicam-se, por um lado, certas incoerências e complementos dentro da obra histórica deuteronomista escrita em um estilo literário homogêneo e com um arbítrio similar: o autor mudava, mas a escola permanecia. Por outro lado, compreende-se sua grande influência no velho testamento além dos limites dos livros históricos de Josué a Reis, por exemplo, na configuração dos livros proféticos. A escola transmitia e comentava (sob a influência do Deuteronômio?) a tradição histórica e profética.

Foi de certa maneira o Deuteronômio o fator que determinou o nascimento da escola deuteronomística? Seja como for, não está claro se o Deuteronômio sempre formou parte da obra histórica Deuteronomista ou se foi agregado a ela de modo secundário. Com base em certos desajustes nos livros dos Reis. Cabe pensar também que existiu outra redação mais antiga, pré-exílica, da obra histórica Deuteronomista.

Com mais fundamento, considera-se, atualmente, como deuteronomista numerosas passagens dos livros de Samuel e dos Reis. A elaboração deuteronomista intervalo nas tradições e nos textos mais do que anteriormente se supunha. Contudo, existe o perigo de se apelar excessivamente ao deuteronomista como no caso do Pentateuco, é preciso distinguir as notas de conexão e as interpretativas, as observações redacionais e o material deuteronomista específico, demonstrável fisiologicamente. Esta distinção é importante para a determinação da antiguidade do material e dos relatos.

Há autores que procuram estabelecer uma história da redação deuteronomista, distinguindo, além do extrato de elaboração mais tardia. Trata-se da concepção fundamental da obra histórica (deuteronomista H), uma elaboração que inclui textos proféticos (deuteronomista P), e outra questão das intenções teológicas teríamos que partir dos diferentes extratos da obra histórica deuteronomista se é que eles podem ser determinados com certa precisão.

A obra histórica deuteronomista traz à luz as mais diversas tradições (importantes para o historiador atual) com sentimento de reverência para com o passar, e as suas fontes, especialmente os “diários” dos reis (1Rs 11.41; 14.19, 29, etc.), onde o leitor interessado pode obter mais informação. Segundo Noth, o deuteronomista não tentou construir a história do povo de Israel, mas quis apresentá-la objetivamente sobre a base do material que teve a sua disposição. Contudo, na opinião de Werner H. Schimidt, este juízo parece demasiado ambíguo em sua segunda parte.

Em primeiro lugar, a obra histórica deuteronomista efetua uma seleção do seu material tradicional, destacando, com base em suas intenções teológicas, os dados relacionados com Deus, com o culto e com certas notícias sobre acontecimentos políticos e bélicos. Em segundo lugar, essa obra complementa a tradição e a modifica com adições, embora às vezes também recolha os fatos mesmo quando não respondem à intenção teológica da obra (cf. 1Sm 8 – 13, sobre a origem da monarquia). Finalmente, a obra julga os acontecimentos partido de sua ótica particular. Em conseqüência, ela não pretende somente expor “como aconteceram as coisas”, não procura somente recolher, ordenar e apresentar os eventos, mas interpretá-los. Ela descreve a história do ponto de vista da fé, em última instância como uma forma de conduta diante de Deus e de seu mandato. Por isso a obra histórica deuteronomista, que de um lado pode se considerar como obra de um historiador, pode se qualificar, de outro, com o mesmo direito, como um “seus tendencioso” (J.A. Soggin).

2. INTENÇÕES TEOLÓGICAS

Israel ficou profundamente afetado pela decadência do reino Setentrional e, sobretudo, pela catástrofe que terminou no exílio da Babilônia. Por isso a obra histórica deuteronomista, se destinava a responder uma pergunta que anteriormente nenhum relato ou crônica havia considerado: a pergunta sobre a existência e o destino do povo de Deus não corresponde somente a um enfoque imposto pela situação. Antes, ela adota ao mesmo tempo o esquema da mensagem profética e um ideal básico do Deuteronômio.

Quando a obra deuteronomista exorta à obediência, ao temor e o amor de Deus, ela faz ver, ao mesmo tempo, evocando o passado, a deficiência de Israel em seguir tais conselhos. A obra constitui, pois, antes e depois da catástrofe, uma de autoconhecimento ou de confissão em forma de uma revisão histórica. O passado de Israel, desde a posse da terra, até o período mais recente, é uma histórica de constantes quedas diante de Deus, que advertia, castigava e no fim vingou duramente sua contínua desobediência. Assim, a historiografia tem um sentido concreto: diante da catástrofe nacional, a demonstração da culpa exclusiva de Israel e da justiça de Deus.

O primeiro resultado desse exame foi: Javé não é responsável; Israel se tornou indigno da felicidade por sua própria culpa. O juízo de Javé na história foi justo. Assim, o deuteronomista se fundamenta na frase “Proclama o céu a sua inocência, que Javé em pessoa vem a Juízo” (Sl 51.6); “sua obra é uma grande doxologia da justiça de Deus, transporta do plano culto ao plano literário” (Gerhard Von Rad, Teologia do i, 421-422).

Tal confissão dificilmente teria sido possível sem o profetismo anterior. Assim, o canto da vinha de Isaías (Is 5) contrasta a ação salvadora de Deus à ingratidão de Israel. Sobretudo, a visão crítica da história israelita (como em Os 11s; Is 9.7s; 43.27s) constitui uma antecipação da obra deuteronomista. A história é o castigo pela culpa, a culpa do povo, e não do indivíduo. O castigo pode demorar por gerações, mas não falha (cf. 1Rs 13 com 2Rs 23.15s ou 1Rs 21.23 com 2Rs 9.36).

A obra histórica deuteronomista toma do Deuteronômio o interesse central pelo primeiro mandamento e evoca repetidas vezes, sob diversas expressões, o primeiro e o segundo mandamentos. O cumprimento da lei não consiste, de modo algum, no cumprimento casuístico dos mandamentos, mas possui o único sentido: não servir aos deuses dos povos vizinhos (Js 23.6s). Assim a obra apresenta no fundo uma só que são questão: como Israel cumpriu a exclusividade e a imaterialidade da sua fé, dois aspectos que aparecem unificados (1Rs 14.9; 2Rs 17.16, etc.). A obra examina a Israel através dos séculos para averiguar se ele “esteve aderido” a Javé (Js 23.8) e se o rei lhe pertencia inteiramente (1Rs 11.4, etc.). A sentença é negativa tanto com respeito ao tempo dos juízes (Jz 2.10s) como o dos reis, embora num sentido diferente, em ambos períodos.

Se a obra histórica deuteronomista concebe a época dos juízes como um tempo em que oscila entre Javé e os baais (Js 2.10s), na época seguinte toda a atenção se concentra em um só ponto: O poder e a responsabilidade se atribuem ao rei (apesar das limitações que estabelece Dt 17.14-20); o rei é o objeto direto da condenação que afeta sua geração.

As possibilidades que a monarquia apresentava ficaram logo comprometidas; ao período de esplendor sob Davi segue uma lenta decadência, e não altos e baixos cíclicos como no tempo dos juízes.

Até mesmo sobre Salomão já recai o juízo: seu coração não esteve inteiramente com Deus. (1Rs 11.4; cf. 8.58,61). Este mesmo veredicto se estende com mais dureza a quase todos os seus sucessores. A tomada de posição direta que falta no relato davídico aparece clara depois, quando o comportamento desse rei passa a ser o critério de conduta:

Seu coração não pertenceu completamente a Javé, seu Deus, como coração de Davi, seu antepassado. Porque Davi fez o que Deus aprova, sem desviar-se de seus mandamentos em toda sua vida, exceto no assunto de Urias (1Rs 15.3,5: cf. 9.4; 11.34, 38; 148, etc.).

Além de Davi, outros reis (de Judá) são objeto de elogios: Asa com restrições (1Rs 15.11, 14), Ezequias sem reservas (2Rs18.3s), o que Josias em termos extremos:

Nem antes nem depois houve um rei como ele não, que se convertesse a Javé de todo coração, com toda a alma e com todas suas forças, de conformidade com toda a lei de Moisés (2Rs 23.25: cf. 22.2).

A conduta do rei para com Deus, mais exatamente para com a lei mosaica contida no Deuteronômio, decide sobre a bondade ou maldade da época. Este critério levará à condenação a monarquia do reino Setentrional, já que a decisão política trazia consigo o afastamento do único santuário de Jerusalém escolhido por Javé. Também o reino Setentrional teria sido salvo, se houvesse guardado os mandamentos como Davi (1Rs 11.38s); mas já o primeiro rei Jeroboão se desviou do caminho reto por sua iniciativa de independentização do culto e determinou assim a falsa orientação do futuro (cf. 1Rs 14.7s; 2Rs 17.21-26s). Com a organização de um culto próprio que perdurou durante toda a história do Estado, com o pecado de Jeroboão (1Rs 14.16, etc.; 2Rs 17.21) parece que a decadência ficou irremediavelmente selada.

Os critérios da obra histórica deuteronomista são, pois, muito unilaterais. Ela diz sobre faltas éticas ou políticas, sobre a injustiça social, tão censurada pelos profetas. Em geral, pela só se refere a delitos religiosos: ir após deuses estrangeiros, transgressão do primeiro e segundo mandamentos, ruptura da unidade e da pureza cúlticas. Contudo, ela coincide com a preocupação profética em fazer mais ênfase nos desvios do que no chamado à conduta justa. Sobre a obra e efetivo do culto expressa a idéia de que a salvação e a desgraça se decidem na história, através da fidelidade ou da infidelidade à própria fé, que implica exclusividade.

A redução da culpa ao âmbito religioso-cúltico, contrariamente à pregação profética, surpreende principalmente porque a obra deuteronomista, ao menos definitiva, concede um amplo espaço aos relatos de profetas, e designa os próprios profetas uma grande importância para a interpretação dos acontecimentos históricos. A palavra de Deus que, segundo a mensagem profética, ressoa esporadicamente no tempo (Isaías cf. 9.7), converte-se agora em realizadora da história, como fora a criadora do mundo segundo o escrito sacerdotal (Gn 1) e regeu os destinos da história ulterior. A exposição deuteronomista nasce da palavra de Deus, que se deixa ouvir como promessa e como ameaça (1Rs 11.29s; 14.7s. etc.) e como realizadora de futuro (cf. os múltiplos sinais de cumprimento, como Js 21.43s; 23.14; 1Rs 15.29; 16.12, etc.).

Nos relatos sobre profetas, estes anunciam a morte dos reis, como fez Elias (1Rs 21.2; 2Rs 1). A obra deuteronomista pode generalizar esses anúncios – sem dúvida pela influência do profetismo escrito – considerando a ruína Setentrional (2Rs 17.23) e do reino meridional como realização da ameaça profética: destruir a Judá “conforme a palavra que Deus, pronunciado por intermédio dos seus servos, os profetas” (2Rs24.2 depois de 20.12s; 21.10s; 22.16s; 23.27). Apesar disso, parece estranho que a obra deuteronomista não mencione nominalmente os grandes profetas de calamidades, como Amós, Oséias ou Jeremias (sobre Isaías cf. 2 Rs19s).

Os profetas, “Servos de Javé”, como são freqüentemente chamados de forma estereotipada na literatura deuteronomista (17.23; 21.10 etc.) tanto anunciam a desgraça, como também assumem, segundo 2Rs17.12, a missão de pregadores do arrependimento: “Convertei-vos”, e exortam à obediência à lei (deuteronômica). As duas concepções do profetismo são possíveis porque a obra histórica deuteronomista vê os profetas em uma situação completamente distinta da de seus ouvintes. As ameaças proféticas se cumpriram, confirmando assim a verdade. O anúncio profético, tanto em sua predição do futuro (cumprido), como em suas chamadas (não atendidas) à conversão exerce a função de testemunho de culpabilidade: o povo não tem desculpa, pois já foi avisado. Mas no supõe isso uma mudança de tom? Ou há outra concepção da profecia no profetismo escrito, que ameaça pelo conhecimento que tem da desgraça iminente e justifica o castigo em suas acusações? É certo que a mensagem profética e a obra deuteronomista denunciam a culpa do povo; mas estavam os profetas tentando avisar?

Segundo Martin Noth, o tema do deuteronomista era “a história passada e já concluída do seu povo”; a pergunta lógica, que indaga se o sentido da história narrada por ele se encontra no futuro, as coisas que nascerão das ruínas da ordem anterior, ficou sem resposta, e na verdade o deuteronomista nem sequer a formulou expressamente. No castigo divino do desastre de Israel relatado pelo deuteronomista, este aparentemente, viu algo definitivo e concluído, e não expressou uma esperança do futuro, nem sequer forma mais modesta e simples de uma expectativa de repatriação e dos deportados.

A obra deuteronomista ameaça de fato muitas vezes com a deportação no caso de desobediência(Js 23.13s; 1Rs 9.7s; 2Rs 17.18,23; 21.14s; etc.), mas dificilmente manifesta expectativas que vão além deste ponto temporal do castigo divino (elas falta especialmente em 2Rs 17; 25). Como o escrito sacerdotal contemporâneo, a obra deuteronomista não contém alusões diretas a um futuro venturoso, tampouco nesse ponto coincide com a pregação profética.

Gerhard Von Rad expressou a opinião de que a obra histórica deuteronomista tem apresentado sempre, desde Davi, a imagem do ungido perfeito. Não somente as ameaças proféticas, mas também as promessas de Natã tiveram uma eficácia histórica. Assim, ao dar a notícia final da anistia de Jeconias (2Rs 25.27s), a obra apontaria para uma possibilidade sempre permanente em Deus. Em qualquer caso, essa notícia não evoca a promessa de Natã e não parece ter a elevada missão de aludir a um futuro messiânico. Mas com esse final aberto, fica a salvação ou a ruína futura pairando no ambiente? Continua vigente a oferta e a ameaça de “servi a Javé sinceramente e de todo o coração” (1Sm 12.24, 14s; 1Rs 2.4; 9.4; etc.)?

Segundo Hans Walter Wolff, a história deuteronomista contém afirmações mais ou menos veladas e indiretas sobre o futuro, já que o tema da conversão (shub) ressoa em quase todas as passagens importantes (Jz 2.6s; 2Rs 23.25; etc.) 2Rs 17.13 resume explicitamente a mensagem de todos profetas na exortação: “Retornai do vosso mau caminho”. Mas aqui está a reação ao chamado ao arrependimento: “não fizeram caso, mas se endureceram, como seus pais, que não confiaram em Javé, seu Deus” (17.14s,19 21.9). A oferta da conversão se refere, pois a um situação passada que desperdiçada.

Somente a oração de Salomão na consagração do templo, embora em complementos tardios (1Rs 8.46s), indica expressamente que Israel, mesmo depois da condenação, no exílio, poderia converter-se e confessar sua culpa de tal forma que Javé lhe escutasse, perdoasse o pecado (v.50) e não rejeitasse seu povo:

“Que Javé, nosso Deus, esteja conosco, como esteve com nossos pais, que não nos abandone a nem nos rejeite. Que se incline para ele o nosso coração, para que sigamos seus caminhos e guardemos os preceitos, ordenanças e decretos que deu a nossos pais” (1Rs 8.57s; cf. Lm 5.21s; Lv 26.44). Esta esperança implica em que todos os povos reconheçam a Javé como Deus (1Rs 8.60, 41). O esquema tardio do Deuteronômio contempla com maior confiança um futuro melhor, e na hora da dispersão espera a reunificação da diáspora e o regresso de Israel ao seu país (Dt 4.29-31; 30.1s).

Assim, os apêndices da obra histórica deuteronomista, que lhe dão continuidade, contemplam o futuro para além do horizonte do castigo e apontam a uma nova meta da história. Mas a obra em si parece se contentar com uma olhada retrospectiva ao passado, com a confissão da culpa e com a justificação do proceder de Deus.

3. QUESTÕES LEVANTADAS PELOS EXILADOS

A obra histórica deuteronomista parece destinada principalmente a trazer respostas para as questões que afligiam os exilados. Esse acercamento nos pode ajudar melhor a interpretar a obra. Em geral, estas eram as preocupações que deveriam ter existido entre os exilados:

Questões sobre identidade: Somos ainda o povo de Deus, ou tem Deus nos abandonado, talvez para sempre?

Questões sobre culpa: O que saiu errado? Deve toda a culpa ser colocada em nós? Existe perdão para crimes tão horrendos?

Questões sobre teodicéia: Foi Deus justo para conosco? A punição é correspondente ao crime? Foram as ações de Deus justificadas? Estamos sendo punidos pelos pecados dos outros?

Questões sobre esperança: Existe qualquer lugar para a esperança, ou estamos condenados ao desespero?

Questões sobre a fidelidade divina: Irá Deus permanecer fiel às antigas promessas? As promessas da terra, prosperidade, etc., ainda valem ou se perderam todas?

Questões sobre a presença divina: Com a destruição do templo, estaria Deus ainda presente entre o povo? Está Deus disponível onde estamos agora?

Questões sobre o poder divino: Dada a derrota de Israel nas mãos de inimigos que serviam a outros deuses, o que isso quer dizer sobre o poder de Javé? Mesmo que haja vontade de sua parte, tem a deidade habilidade para produzir libertação?

Questões sobre idolatria e sincretismo: Valeu a pena adorarmos a um só Deus? Não seria melhor para o nosso futuro se fôssemos mais sincretistas?

Questões sobre pureza: Qual deveria ser nosso relacionamento com outros povos, dado os problemas que a miscigenação nos trouxe no passado? Deveríamos ser separatistas?

Questões sobre continuidade e mudança: Até que ponto se for realmente necessário, podemos confiar nas antigas verdades? Os veneráveis símbolos da fé (por exemplo, o templo) permanecem como parte daquilo que significa ser o povo de Deus?

Questões sobre um novo começo: Qual deve ser a forma da comunidade no outro lado do Exílio? O que podemos fazer para assegurar que isso não aconteça de novo?

Questões sobre liderança: Dados os padrões anteriores de liderança, o que é apropriado para hoje e para qualquer futuro que Deus tiver reservado para nós? 

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