domingo, 21 de março de 2010

A formação dos escritos do Antigo Testamento: O Escrito Sacerdotal

Elaborado por: Súsie Helena Ribeiro e Dalton Said Henriques

1. QUESTÕES INTRODUTÓRIAS

O espírito do escrito sacerdotal se revela em suas três características mais importantes.

1.1 Vocabulário e Estilo

O P é facilmente identificável pelo vocabulário e qualidades estilísticas. Exemplo de expressões peculiares a P: “crescei e multiplicai-vos” (Gn1.28; etc), “recordar o pacto” (9. 15s; etc), estereotipadas (Ex16.16; Lv 1.1s; etc). Outra característica é os grandes períodos com freqüentes repetições. O escrito básico carece, em geral, de vida, de plasticidade, do detalhe pitoresco e do calor da linguagem. Os personagens aparecem simplesmente esboçados, sem seus traços concretos. O elemento narrativo passa a um segundo plano, em comparação com as fontes mais antigas. A uniformidade produz uma impressão ambígua: pode alcançar o sublime (Gn 1), mas também se degenerar no estilo rígido, esquemático e até pedante. O estilo prolixo decorre da intenção de se dar uma descrição exata de cada fenômeno, buscando concentrar-se em princípios teológicos.

1.2 Preocupação com Cifras

O escrito sacerdotal apresenta, em maior medida do que as fontes antigas, uma série de cifras. Isso vai desde a medida da arca até o senso do povo. O estilo sacerdotal contém, em especial, uma cuidadosa cronologia em projeção retrospectiva, começando prudentemente com a contagem dos dias no relato da criação e passando pela data do dilúvio, desconhecida ainda pelas tradições anteriores (Gn 7.11; 8.13; etc), até outras indicações de anos, meses e dias. Os números e os nomes vão, com freqüência, unidos em listas e em genealogias. Estas listas e genealogias provém, por exemplo, de um Toledot ou registro genealógico inicialmente independente, que começa em Gn 5.1 (cf. 6; 9; 10; 1; 11.10; etc), embora P faça uso também do termo em Gn2.4a, para explicar a criação do mundo através de uma “história das origens”.

Também J enlaça distintos relatos mediante genealogias, em uma seqüência narrativa, mas P vem quase a inverter a relação: o relato histórico se reduz muitas vezes como simples genealogia. Sobretudo no que se refere à tradição patriarcal (mais precisamente nos relatos sobre Isaque, Jacó e José) o escrito sacerdotal se mostra muito cauteloso, limitando-se substancialmente a dados genealógicas. Somente dois capítulos, Gn17 e 23, contam pormenorizadamente alguns fatos, e é surpreendente que as fontes escritas mais antigas falte o paralelo de ambas as narrações.

1.3 Preocupação com o Culto

O escrito sacerdotal deve o seu qualificativo à atenção especial que dedica ao culto regulamentado, tanto no que diz respeito ao lugar do culto – o santuário – como a seu objetivo: a manutenção da pureza e da santidade. Ele expõe as normas do culto e mostra interesse pelo sacerdócio encarnado na pessoa de Aarão e nos levitas. Aarão aparece ao lado de Moisés e até funciona como mediador entre este e o povo (Ex 7.1; etc).

O escrito sacerdotal adota uma atitude muito mais livre do que o javista frente às tradições e seu estilo é sem dúvida mais reflexivo teologicamente do que o próprio eloísta. P submete as fontes antigas a um tratamento mais ou menos unilateral, mediante a seleção ou a omissão dos materiais. Faltam em P as narrativas coloridas da história primitiva e patriarcal; ignora, por exemplo, a infância de Moisés e suas relações com Midiã. Faz emendas na história do dilúvio dos patriarcas, partindo do pressuposto de que o culto deve seu início no Sinai. P nada fala do sacrifício de Noé, nem da construção do altar, nem da distinção entre os animais puros e impuros (6.19s; 7.15s P, em oposição à 7.2; 8.20 J). P omite, da mesma forma, as informações sobre o culto na época pré-mosaica, porque contradizem sua idéia de que o verdadeiro sacrifício teve início na revelação sinaítica (Ex 25s) .

2. INDEPENDÊNCIA

Embora o escrito sacerdotal ofereça, às vezes, somente um simples esquema prático, ele foi originalmente um documento independente. Algumas razões para isso:

Existem duplicações entre as duas fontes antigas (JE) e a recente (P) que sugerem a independência original do escrito sacerdotal. Isto se vê, entre outros casos, nos relatos da vocação de Moisés (Ex 3 e 6).

Não tem sido possível determinar com exatidão as relações do escrito sacerdotal com as duas fontes escritas mais antigas.

Os textos sacerdotais se prestam à leitura e oferecem, apesar de certa prolixidade, um conjunto coerente que só se interrompe por pequenas lacunas, devido a relações posteriores.

Os textos do escrito sacerdotal estão conectados entre si por determinados motivos. Assim, a idéia da bênção divina recorre o Gênesis desde a história da criação de até o cumprimento, para continuar com a promessa da terra e da assistência de Deus a seu povo. O escrito sacerdotal formou material sobre o qual se integram as fontes J/E já combinadas. Precisamente porque o escrito sacerdotal era com freqüência sumário e preciso, pareceu conveniente completado com textos mais antigos. Assim, a redação do Pentateuco neutraliza as reservas do sacerdócio frente à tradição.

3. UNIDADE

O escrito sacerdotal apresenta pouca unidade quando é estudado com certo rigor. A linha narrativa de P em Gênesis é quase perfeita, mas no trânsito do o livro de Êxodo aparecem alguns desajustes e até duplicações, mesmo descartando conjuntos extensos (que exibem certa unidade externa), o resto não fica isento de incoerências. Pode se explicar o surgimento do escrito sacerdotal mediante certa hipótese: um texto escrito por sacerdotes, identificável com maior com menor precisão (Pg) foi se ampliando no decurso do tempo com material de todo o gênero (Os ou o incremento secundário), incluindo principalmente o material cúltico-legal, complementos narrativos e dados genealógicos. Esta distinção de diversas capas no escrito sacerdotal (material básico e complementos posteriores), significa que esse texto em sua forma atual não é a obra de um só autor, mas de uma escola, isto é, de um círculo sacerdotal que possuía idéias similares, recorreu a tradições, elaborou-as e as pôs por escrito.

4. SITUAÇÃO NO TEMPO

Dada sua lenta formação literária, não é fácil situar no tempo a redação do escrito sacerdotal. Desde 1875, aproximadamente, prevaleceu a hipótese segundo a qual o códice sacerdotal foi a última fonte escrita e nasceu no exílio. Tal é a opinião corrente. Outros consideram como o mais provável a primeira época pré-exílica (século V a.C.).

As razões principais para se fixar a data tardia dessa fonte foram mais do tipo histórico-cultural do que de caráter lingüísticos:

A centralização cúltica exigida pelo Deuteronômio, segundo o qual o povo de Deus só conhece um santuário, é algo óbvio para o escrito sacerdotal. O Deuteronômio reclama da unidade de culto, e no códice sacerdotal esta unidade pressuposta. O santuário (Ex 25s) é o único lugar de culto legítimo da comunidade das doze tribos antes de Salomão e por isso constitui uma projeção do tempo posterior. Portanto, seria impossível datar o nascimento do escrito sacerdotal antes do aparecimento do Deuteronômio (621 a.C.). Existem, além disso, certos pontos comuns. Não parece obra do acaso que ambos considerem a obra de Moisés principalmente em seu papel de mediador legislativo.

P representa um estágio tardio na história do culto tal como se pode encontrar no antigo testamento. Sobretudo no que diz respeito à data exata das festas, a distinção dos sacrifícios e a hierarquia do sacerdócio (Ex 28ss).

P subistitui o termo “povo” (‘am) por “comunidade” (‘edah), porque, como membro da comunidade pós-exílica, que chegou a ficar estatalmente independente, considerou a vinculação ao santuário como decisivo. A unção e outros símbolos da realeza e se converteram agora em sinais distintivos do sacerdócio (Ex 28ss).

A importância que a circuncisão e a santificação do sábado adquirem no escrito sacerdotal, como “sinais” distintivos da fé javista, só se pode explicar tendo em vista as condições do exílio. Seu uso era desconhecido na era babilônica, e por isso tais práticas puderam se converter em critério distinto em contraste com a religião de outros povos. Segundo escrito sacerdotal, não é Moisés (cf. Ex 4.24ss), mas Abraão que recebe o mandato da circuncisão como sinal de uma “Aliança eterna”. O guardar o sábado se pressente na criação, quando Deus descansa no sétimo dia, o abençoa e o santifica. De qualquer forma, o homem do período original e patriarcal nada sabe ainda do sábado. Israel descobre a peculiaridade do sétimo dia quase que por azar, durante a marcha pelo deserto, conforme o relato do maná. Este não pode ser conservado de um dia para outro, exceto no sexto dia, quando vem em quantidade dupla, para ser usado também no sétimo dia. É inútil trabalhar no sábado (o maná não vem), e assim Israel é levado a guardar o descanso sabático.

A conclusão quanto à questão da data do escrito sacerdotal é que o escrito fundamental (Pg) teria nascido no exílio, enquanto que os complementos (Ps) foram redigidos na época pós-exílica. Como supõe a maioria dos estudiosos e com maior fundamento, presume-se que o escrito sacerdotal foi redigido no círculo dos deportados à Babilônia, para ser enviado mais tarde, talvez por Esdras, à Palestina.

5. LIMITES DA OBRA

O escrito sacerdotal tem seu início e seu primeiro núcleo na história da criação (Gn 1.1-24a). Seu limite final, segundo a opinião mais razoável, encontra-se em Dt 34.7-9. Esta obra histórica, portanto, abarca desde a criação do mundo até a morte de Moisés. Os principais textos de P se encontram em:

  • Gn 1.1 – 2.4a: criação.
  • 6 - 9: dilúvio, aliança com Noé.
  • 17: aliança com Abraão.
  • 23: compra na gruta de Macpela.
  • Ex1.1,5,7,13ss: multiplicação dos israelitas, opressão no Egito.
  • 2.23-25: queixa (resposta de Deus).
  • 6ss: vocação de Moisés, promessa de redenção.
  • 7 – 14: pragas, páscoa, saída, salvação.
  • 16: Murmuração, maná, sábado.
  • 19.1ss; 24.15ss: Revelação no Sinai.
  • 25 – 29: disposições sobre o santuário.
  • Lv 8ss: consagração sacerdotal (cf. Ex 29) e primeiros sacrifícios.
  • Nm 10.11ss: partida do Sinai.
  • 13ss: relatório dos exploradores, incredulidade do povo.
  • 20: Incredulidade de Moisés e Aarão, morte de Aarão.
  • 27.12ss: investidura de Josué.
  • Dt 34.1a, 7 – 9: morte de Moisés.

Esta delimitação de conteúdo nos leva considerar o fato de que o escrito sacerdotal, que sempre reitera a promessa de posse da terra e lhe atribui maior importância do que as outras fontes mais antigas carecem de um relato específico sobre o tema. Só a geração futura entraria na terra, exceto Josué e Calebe (cf. Jr 29.5s, 10). Seria isto um reflexo das condições de vida da comunidade exílica? Pode ser que P pretenda, olhando passado, despertar a esperança para o futuro, segundo o qual a comunidade esperaria a realização da antiga promessa. Na verdade, o escrito sacerdotal nunca apela diretamente à esperança, nem contém, ao menos explicitamente, afirmações escatológicas.

6. INTENÇÕES TEOLÓGICAS

P já foi chamado o livro das 4 alianças. Foi comprovado, contudo, que P só fala de uma dupla aliança, já que ele reserva o termo “aliança” (berit) aos 2 acontecimentos centrais: as promessas divinas a Noé e Abraão. Mas, de qualquer forma, P divide a história em quatro períodos. No começo de cada período registra-se um acontecimento importante, com um ato ritual ou certas disposições sobre o culto religioso:

1.1 A Divisão dos Períodos no Escrito Sacerdotal

Gênesis 1
Criação do mundo (o homem imagem de Deus, dominador da terra).
As plantas como alimento; descanso de Deus no 7º dia.
Elohim = “Deus”

Gênesis 9
Aliança de Noé (humanidade)
Mandatos a Noé: Abstenção do sangue e proibição da morte violenta; o arco-íris como sinal.
Elohim = “Deus”

Gênesis 17
Aliança de Abraão (futuro povo de Deus): promessa de sucessão e de terra; fórmula de aliança, v 7s, Abrão = Abraão, Sarai = Sara, Gn 23, compra de terra.
Exigência de perfeição diante de Deus; circuncisão como sinal.
El Shaddai = “O Deus Todo-Poderoso”

Êxodo 6 e 24.15s
Depois do cumprimento da promessa de descendência (Ex 1.7): Período Mosaico, Sinai.
Páscoa (Ex 12); santificação do sábado (Ex 16; cf. 31.12s). Santuário, prescrições célticas (Ex 25s).
Desde a vocação de Moisés (Ex 6): Javé; no Sinai (EX 25) e depois da construção do santuário (Ex 40; Lv 9): Kabod ou Glória de Javé.

1.2 Orientação Universal

Apesar do grande interesse que demonstram pela comunidade cúltica, tanto escrito sacerdotal como o javista revelam uma discreta orientação universal. A história começa com a criação do mundo. Não somente o israelita, mas o homem em geral é, como criatura imagem de Deus, de certo modo representante de Deus na terra: recebe o encargo de dominá-lo e é objeto de uma bênção especial. A promessa de Deus a Noé afeta todos os homens, embora a segunda promessa aliancista (Gn 17) se dirija a um grupo reduzido: Abraão e seus descendentes.

1.3 O poder de Javé contra os deuses.

P acrescenta o episódio das pragas como um debate entre a religião egípcia e a fé javista com o milagre do mar Vermelho como juízo conclusivo, no qual Javé é glorificado. Como Elias enfrenta os profetas de Baal (1 Rs 18), Moisés e Aarão, na disputa com os magos, enfrentam no nome de Javé uma multidão de adivinhos egípcios. Os magos conseguem algum êxito a princípio, mas são depois superados pelos representantes de Javé, cuja ameaça se torna realidade: “Farei justiça sobre todos os deuses do Egito” (Ex 12.12). É possível que, no fundo, P esteja tentando mostrar a superioridade da fé javista sobre a religião e a feitiçaria dos babilônicos.

1.4 A Glória de Javé

A expressão “cobrir-se de glória” passa a ser, como substantivo “glória de Javé”, a palavra-chave do relato sacerdotal sobre a peregrinação no deserto e sobre a revelação sinaítica. Com a idéia da “glória de Javé”, que a história da saída do Egito havia antecipado (Ex 14). P conecta a revelação sinaítica com a marcha pelo deserto (Ex 16; Nm 14; etc), mostrando que no Sinai se manifesta o Deus que libertou Israel do Egito. As palavras e as ações de Deus no culto que na história se mesclam entre si e não podem ser separadas umas das outras.

1.5 Transcendência

P assume intenções teológicas, que aparecem igualmente no Deuteronômio, quando tenta descobrir a presença de Deus sub a espécie do “nome”. Tal distinção pode provir do afã em falar de Deus evitando tudo que suponha representação, analogia ou manipulação, em consonância com o segundo mandamento. Seja como for, P procura expressar a transcendência de Deus e a manifestação do seu poder no mundo; e, em conseqüência, sua liberdade na revelação. A mesma tendência se observa nos mais diversos contextos. Por exemplo, P emprega um termo próprio para designar a obra criadora de Deus: bará (Gn 1.1; etc), a fim de evitar qualquer analogia com a atividade humana.

Para ler sobre a Obra Histórica Javista clique aqui.
Para ler sobre a Obra Histórica Eloísta clique aqui.
Para ler sobre a Obra Histórica Deuteronomista PARTE 1/2 clique aqui.
Para ler sobre a Obra Histórica Deuteronomista PARTE 2/2 clique aqui.
Responda você mesmo à pergunta: Moisés escreveu o Pentateuco?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não esqueça de comentar esta postagem. Sua opinião é muito importante!