sexta-feira, 2 de abril de 2010

O termo "Religião Cristã", suas mudanças históricas e implicações para a compreensão soteriológica no Cristianismo PARTE 1/3

Por Carlos Chagas

Esta série de artigos trata do assunto abordado por mim em minha monografia, a qual foi apresentada como exigência do curso de teologia da FATE-BH em 2008. Aqui, procurei, de forma simples e rica, propagar a minha idéia sobre o que seja religião e salvação cristã sem se afastar demais do que foi escrito na monografia. Portanto estes artigos terão uma linguagem simplificada sobre o assunto. Caso queira uma leitura mais científica aconselho ler minha monografia, que pode ser baixada na íntegra no link que segue no final deste artigo.

O termo “religio” ou “religião” nem sempre possuiu o significado que hoje possui. Será mostrado neste capítulo, como que se deu o surgimento e a posterior apropriação do termo pelo cristianismo juntamente com suas elaborações mais sofisticadas para o mesmo. Desde já é possível considerar que o termo, através da história, obteve grandes modificações e estas interferiram grandemente na compreensão do mesmo, nunca mais proporcionando a volta à conceituação que se tinha de início. Tais mudanças foram um processo histórico que será mostrado a seguir.

O termo “Religio” e suas adaptações históricas

Diz-se de antemão que o termo “religião” não pode ser aceito como algo que simplesmente explica a existência de uma instituição religiosa. Assim como os demais termos que possui significante, o termo “religião” surgiu na história com um simples significado, e, com o passar do tempo várias transformações conceituais aconteceram com ele chegando então na compreensão que se tem hoje do mesmo.1

Em sua origem, “religião” denotava algo relacional entre deuses e homens, com caráter de atitude de um para com o outro. Algo puramente relacional com intuito de transformação de conduta. O termo é de cunho humano, ou seja, homens criaram o termo e inferiram significado no mesmo.2

A dificuldade maior encontrada na interpretação do termo “religião” está no desenvolvimento histórico. Com o passar do tempo o termo, que antes tratava de conduta, passou a ser visto como código de legal de ritos e observâncias religiosas. Isso se deu pelo fato de o cristianismo, religião em voga na época, adotar o termo inferindo nova visão no mesmo. “A palavra “religião” agora é trazer definição (conceito) e distinção (contraste) deixando para segunda instância a preocupação com o envolvimento com “o outro”.3

Mudança maior surge quando “religião” se torna algo de comparação ao modelo do vizinho. Esta palavra não possuía plural, no entanto, agora que é código de conduta contrastando com outra “religião” necessita do emprego de plural. Mas vale lembrar que no Novo Testamento, de forma alguma, os discípulos e apóstolos, jamais tiveram tal idéia sobre a palavra religião como foi apresentado até agora.4 Portanto, desde antes de Cristo até o século IV d.C. a mudança é significativa. “Religião”, de forma de conduta se torna norma de conduta. E essa mudança é muito forte.

O cristianismo como religião

Sabendo que a base do cristianismo era, na era primitiva da igreja cristã, na pessoa de Jesus Cristo tão-somente, é que será possível entender como foi a elaboração cristã da compreensão do cristianismo como religião. Antes ser cristão era seguir a Cristo (lógico que havia uma teologia elaborada para melhor explicação), e hoje é ser adepto do cristianismo. Nos primeiros séculos o que definia um cristão era a sua fé no Cristo. O termo “cristão” é que significou o cristianismo e não o vice-versa. Posteriormente e de forma sutil, o que definia quem era cristão ou não era o fato de pertencer ou não ao cristianismo. O que antes era “religião cristã” passa a ser “cristianismo” não se referindo mais à qualidade, todavia à instituição; denominação.5

Ver o cristianismo como religião, e este termo de forma evoluída, transformou o cristianismo em algo elaborado, com regras e dogmas. Entretanto, com o passar do tempo este cristianismo se viu no mesmo problema que o judaísmo da época de Jesus. A lei judaica era utilizada como mecanismo de desumanização, da mesma forma que o cristianismo tornou-se escravizador do ser humano, impondo leis e dogmas que já não mais tratavam do ser humano em relação a Deus e sim do ser humano em relação ao cristianismo, agora portador exclusivo da salvação vinda de Deus.6

Na era moderna, mais especificamente no Iluminismo, a filosofia e a filologia ajudaram a entender a evolução do cristianismo e do termo “religião”, mostrando que o que antes era de valor no pensamento cristão agora já não mais necessita ser. Infere-se que cristianismo, em seu início de história, valorizava a história de Jesus, passando então para o conceito sobre Jesus, indo então para a melhor categorização sobre o que falaram de Jesus Cristo, não esquecendo sobre quem faz ou não parte da Igreja de Cristo, chegando à época atual valorizando ou um conjunto de regras ou preceitos sobre Jesus Cristo e a Igreja, ou um conjunto de textos e valores tradicionais adquiridos através da história.7 É neste período da história que a fé cristã se volta mais para a religião cristã do que para Cristo. Havia mais sentido em acreditar no cristianismo de Cristo do que no Cristo do cristianismo.

Sendo assim, nasce a idéia de que a salvação só pode ser encontrada no cristianismo. Inicialmente a igreja não se preocupava com as demais “religiões” porque ainda não tinha nascido a idéia de “religião enquanto instituição”. Ela se voltava à imitação de Jesus e à preocupação com a busca pelo outro. Ao se mudar a compreensão do termo religião ficou claro que já não é mais o ser humano, em sua iniciativa, que se liga em Deus, todavia a instituição religiosa que faz este trabalho na forma que se compreende hoje.

Assim como o termo “religião” se transformou com o tempo assim também o foi os demais termos ligados a este. A palavra “fé”, por exemplo, que antes não se ligava com a instituição, passa a estar ligado e agora com um conjunto de regras para a definir da forma mais correta. Logo, a “fé” passou a ser uma representação da religião, ou seja, cada fé distinta é uma religião.

A dimensão salvadora do termo “religião

Religião está ligada à salvação. Isto porque somente a religião pode levar o homem ao abrigo, amor e esperança ante a realidade da morte. A religião nasce a partir da necessidade de se vencer a angústia que a vida proporciona, a saber, a morte. Contudo a religião nem sempre é boa, já que esta nasce a partir de percepções do home em relação à sua leitura da vida. Se esta leitura for errônea, a religião também será. Portanto a religião não só liga o ser humano a Deus como também ao seu meio de convívio, fortalecendo a passagem bíblica que diz: “ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de todas as suas forças. [...] Ame o seu próximo como a si mesmo” (Mc 12.30-31a). A religião deve passar por uma releitura de si mesma.8

A religião é a percepção possível da vida e de Deus. Cabe ao homem saber ler a vida, entender Deus e encarar a si mesmo visando o melhor objetivo. É da natureza da religião elaborar teses para o melhor entendimento possível da realidade que cerca o ser humano. Com isso a religião passa a ter seu papel importante enquanto instituição para o ser humano e para sua relação com o próximo, com seu meio, consigo mesmo e com Deus. A instituição religiosa é relevante, não importando aqui sua confissão de fé.

Vale lembrar que toda religião é evolutiva. E todo ser humano é formativo. É na interação entre ambos que se dá a identidade do indivíduo e da religião. É uma espécie de permuta. Sendo assim, o adepto da religião passa a se ver como uma nova pessoa, sendo definida e, ao mesmo tempo, definindo a religião.

No cristianismo não é diferente. Este também sofre mudanças. Como foi a teologia do século XIX e do início do século XX, que era anti-semita, mas que após a 2ª Grande Guerra passou a ser uma teologia mais inclusiva.9 E até na leitura bíblica é possível mudanças de paradigmas, onde se tem teologias que definem a Bíblia como um conjunto de textos de um povo que experimentou Deus e que resolveram escrever essas experiências vencendo então a abordagem antiga de que a Bíblia é “a Palavra de Deus” de forma literal.10

Visto por essa ótica entende-se por religião não algo imutável, já que é o homem que insere significado na religião; não algo significante apenas, já que é significado também (a religião age e sofre; caracteriza e é caracterizada); mas como algo reflexivo e progressivo, já que esta sempre se encontra em formação assim como o homem, quer está inserido nesta, também se encontra em formação. 

Portanto deve-se ler o cristianismo como uma religião em formação e não como algo que nasceu pronto. Faz-se necessário uma releitura do cristianismo, desde seu nascimento até aos dias de hoje, percebendo o desenvolvimento histórico e soteriológico (referente à salvação) do cristianismo. Assim, no próximo artigo ver-se-á o aspecto soteriológico do cristianismo: Como este nasceu e evoluiu e como sofreu mudanças na compreensão sobre o que seja a salvação para o homem, ao mesmo tempo em que o cristianismo se adaptava à história de sua existência. 


Este artigo é uma adaptação da minha monografia, a qual foi apresentada como exigência do curso de teologia da FATE-BH em 2008. Caso queira lê-la integral e gratuitamente baixe-a clicando aqui.


Referências das Citações:

1 O termo “religio” é de origem latina; sofreu modificações quando adotado pelos gregos. Surgiu antes de Cristo. Cf. SMITH, 2006, p. 7-13, 187.
2 Cf. SMITH, 2006, p. 32-34, 108; McGRATH, 2005, p. 603, 304-606.
3 Cf. SMITH, 2006, p.35-36.
4 Cf. SMITH, 2006, p.36, 64.
5 Cf. KÜNG, 1979, p.20-21 e Cf. SMITH, 2006, p.75-77
6 Cf. SMITH, 2006, p. 100-101 e McGRATH, 2005, p. 41-44.
7 Cf. GRUDEM, 1999, p.1021; Cf. CNBB, 2007, p.38-69. Aqui refere-se também à confissão de fé protestante e sua alegação de que somente as Escrituras possuem total autoridade.
8 Cf. DREWERMANN, 2004, p.10-12, 28, 36-39, 41, 73, 77-78.
9 Cf. KÜNG, 1976, p.143-145. 
10 Cf. COOK apud PIERATT, 1994, p.115-124.

BIBLIOGRAFIA:

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Sou Católico: vivo minha fé. Brasília: Edições CNBB, 2007.

DREWERMANN, Eugen. Religião para quê? Buscando sentido numa época de ganância e sede de poder. Em diálogo com Jüngen Hoeren. São Leopoldo: Sinodal, 2004.

GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999.

KÜNG, Hans. Ser Cristão. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

______20 teses sobre o ser cristão. Rio de Janeiro: Vozes, 1979.

McGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução à teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.

SMITH, Wilfred Cantwell. O sentido e o fim da religião. São Leopoldo: Sinodal, 2006.

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