quinta-feira, 8 de abril de 2010

O termo "Religião Cristã", suas mudanças históricas e implicações para a compreensão soteriológica no Cristianismo PARTE 2/3

Por Carlos Chagas

Esta série de artigos trata do assunto abordado por mim em minha monografia, a qual foi apresentada como exigência do curso de teologia da FATE-BH em 2008. Aqui, procurei, de forma simples e rica, propagar a minha idéia sobre o que seja religião e salvação cristã sem se afastar demais do que foi escrito na monografia. Portanto estes artigos terão uma linguagem simplificada sobre o assunto. Caso queira uma leitura mais científica aconselho ler minha monografia, que pode ser baixada na íntegra no link que segue no final deste artigo.

O cristianismo antigo

O cristianismo surgiu como seita do judaismo tendo que adotar ritos, dogmas e metodologia nas elaborações teológicas. Para isso precisou de ferramentas para sua própria construção.

Para que o cristianismo se estabelecesse era necessário uma melhor compreensão de sua época e adaptação na mesma. Uma nova hermenêutica (releitura) da Torá foi necessária para a distinção de cristãos e judeus. Temas com pensamentos judaicos foram reelaborados com uma nova leitura, a saber, a cristã.1

Outra necessidade para o cristinaismo nascente foi a apologéticafrente ao Império Romano e sua cultura. Diante do pensamento filosófico do império o cristianismo se viu obrigado a dialogar com uma teologia totalmente filosófica para que fosse possível seu estabelecimento. Portanto o cristianismo realizou a releitura dos grandes filósofos gregos, Platão e Aristóteles, diante de religiões filosóficas como gnosticismo, estoicismo e epicurismo.

É diante desses diálogos que o cristianismo engloba em suas elaborações releituras das primeiras religiões do Império Romano. O que o cristianismo faz é uma identificação de certas características, atributos e leituras das demais religiões se apropriando daquilo que era considerado o certo.2

Nunca o desenvolvimento teológico foi estável no cristianismo. Na era antiga se deu a escrita do Novo Testamento; um compêndio de livros que lutavam contra a visão de mundo da época. Ainda nesse período os pais da igreja (discípulos dos apóstolos) lutavam contra a visão de mundo da cultura romana (apologéticos) e contra a leitura "errônea" das Escrituras dentro da igreja (polemistas). Foi através desta luta que o cristianismo desenvolve a "espinha dorsal" de sua teologia; as doutrinas sobre trindade, divindade, salvação, dentre outras. É nesta época que nasce o catolicismo (católico = universal). Assim como foi o termo "religião" diversos termos foram usados pelo cristianismo numa releitura válida destes visando uma autenticação de si próprio enquanto religião válida.3

No que tange à salvação, a doutrina da época resumia que ser salvo estava restritamente ligado à morte e ressurreição de Jesus Cristo. A salvação nesta época se dava pelo arrependimento para com Deus e a fé em Cristo, e tão-somente isto.4 O arrependimento era algo crucial, contudo este era em forma penitencial (boas-obras) coordenado com a fé para garantir o favor divino.5

O cristianismo medieval

Este período se estende de 600 a 1450.6 Nesse período a Igreja e o estado se encontravam juntos. Eram os bispos que governavam suas cidades. Isso é importante para se perceber as mudanças no pensamento eclesio e soteriológico.7

Devido ao crescimento numérico, geográfico, e científico-religioso do cristianismo, nasce dentro deste 3 grandes movimentos: O escolasticismo, o misticismo e o biblicismo. No escolasticismo, movimento de studos metodológicos da doutrina cristã, ficou definido que a autoridade da igreja residia na tradição desta, vinda dos pais da igreja, nos credos e nos concílios, e na Bíblia. Logo, percebe-se que a autoridade da igreja passa a ficar na sua história e seu desenvolvimento, o que não era pregado pela igreja primitiva. A fé toma um 2º plano já que a razão é o crivo para uma definição correta. O método dialético do "sim e do não" é adotado, o que recebe o nome de dogmas.8

No escolasticismo nasce uma nova forma de se compreender a fé cristã católica: por meio da filosofia. O escolasticismo tentou por séculos definir toda a sapiênci cristã em teses filosóficas, deixando a compreensão soteriológica mais e mais diferente através da sua história. A salvação é definida pela escolástica como algo totalmente ligado à submissão à igreja. Todavia alguns não aceitam tal posição e buscam outra forma de compreensão de fé. São os místicos, mais conhecidos como monges, monásticos ou monasticistas.

Os monásticos (monges) não aceitavam a posição da igreja. Os monges, nos quais se encontravam muitos leigos, buscavam uma leitura da realidade enquanto que a igreja buscava sua legitimação, o que, às vezes, negava a realidade dos leigos. É assim que nasce as superstições populares. Essas superstições eram alimentadas pelo povo através de crenças e até mesmo pelo escolasticismo, mesmo sabendo que este não era aceito por aqueles.10

Devido à crença da necessidade de boas obras nascem os sacramentos. Os sacramentos eram, talvez, o elemento mais importante da igreja medieval. Os sacramentos reclamavam para si a apropriação de algo material para curar algo espiritual ocasionado pelo pecado original e pelos pecados de cada um.11

Enquanto que o escolasticismo se detinha nas elaborações filosóficas, teológicas e na tradição, e o monasticismo no misticismo, um outro movimento se detinha nas Escrituras, conhecido como biblicismo. Estes biblicistas receberam posteriormente o título de pré-reformadores devido ao ideal de reformarem a igreja através da releitura da Bíblia. Eram contra o enriquecimento da igreja, ligação clero-estado, autoritarismo, indulgências, papado e diversos outros fatores.12

Na era medieval o cristianismo muda radicalmente sua compreensão sobre salvação. Esta agora está ligada à filosofi, teologia católica e à submissão à igreja, diferente da compreensão antiga que ligava à fé em Cristo. No período medieval éimpossível falar de salvação fora da igreja, e esta católica. Como a fé católica era a única cristã no mundo a submissão ao Papa é crucial para a salvação já que este é a voz de Deus na terra.

Para que o homem seja salvo é preciso trocar seu livre-arbítrio pelos sacramentos, os quais são conhecidos como boas obras ou ritos e observâncias, resumindo a salvação num compêndio dogmático de práticas. A fé é algo de segundo plano. Aliás, a fé é tão subjetiva que não se pode entendê-la apenas como crença em alguém, mas como código de conduta ligado aos dogmas católicos.13

O cristianismo moderno

O início do período moderno é marcado com a Renascença, período este que dá ênfase ao homem como centro de tudo e retorno às artes antigas e clássicas. Sendo assim o cristianismo moderno larga o ideal medieval que é Deus no centro dos estudos, adequando o homem como a medida de todas as coisas. Isso limitou mais ainda a compreensão sobre o que seja religião e sobre seu poder de intermediação na salvação humana.

Unindo o ideal pré-reformador com o crescimento da ciência humana renascentista surge um novo movimento que parte o cristianismo em 2: A Reforma. A Reforma foi um movimento que buscou mudanças para a igreja católica sem qualquer intenção de rompimento com a mesma. O objetivo era retornar à pureza original do cristianismo primitivo descrito no NT. Aqui se vê como a era moderna muda a concepção cristã: Se a Renascença retorna aos escritos e artes antigas, o cristianismo larga a teologia patrística e medieval para dar ênfase aos apóstolos e à Bíblia, que são os documentos mais antigos do cristianismo.14

A Reforma continuou a trabalahr a intenção dos pré-reformadores em seu início, mas após o rompimento com a Igreja Católica, os reformadores passaram a dar ênfase, depois de um tempo, a uma escolástica protestante, onde redefiniram a fé cristã na visão protestante. O termo "protestante" nasce devido aos crentes cristãos, revoltados com os ideais católicos, exigirem a transformação radical da Igreja Católica, o que não aconteceu graças ao movimento conhecido como Contra-Reforma.

O fato é que a compreensão soteriológica desta época satura de tal forma que nunca mais na história se viu tantas possibilidades para tal área. A grosso modo, na era moderna, a compreensão soteriológica católica é que Deus deu o primeiro passo para a salvação humana, e que o homem deve dar o segundo passo, que é cumprir os sacramentos e ser fiel à compreensão de fé católica. Já no meio protestante a soteriologia divaga em compreensões sem fim. Desde a queda total do homem, tendo este dupla predestinação, do inferno e do céu, à simples predestinação, ao livre-arbítrio e à liberdade condicionada, faz da teologia protestante moderna um solo fértil para os estudiosos, ao mesmo tempo que algo penoso e difícil.

Contudo o que fica latente e inquestionável na teologia protestante é a crença de que a "justificação do homem vem pela fé". O resgate da fé pelos protestantes é algo riquíssimo para o cristianismo, que agora se vê no plural: Cristianismos; católico e protestante.

Detendo-se na compreensão soteriológica do cristianismo moderno perceber-se-á que a compreensão de salvação católica não muda muito, apenas reforça a idéia de que somente a igreja católica tem o direito de ler a Bíblia e de que só o catolicismo possui a salvação. Isso é a condenação dos protestantes.

A soteriologia católica ainda continua como na idade média, baseando-se nos sacramentos. São 7 sacramentos que perduram até hoje. Até então o catolicismo não abriu mão do Concílio Ecumênico de Florença (1442) que dizia que “fora da igreja não hásalvação”.15 A igreja única de Cristo, segundo os  católicos, ainda é a igreja católica não havendo nenhuma outra legítima ou legitimada por Cristo.16

O ser humano é totalmente corrompido em suas tentativas de justificação por si só, necessitando de Deus para levantá-lo de sua situação de queda. Os sacramentos o elevam em estado de graça que por sua vez o salva. O ser humano caminha para a sua salvação intermediada pela igreja nos sacramentos por esta instituído sabendo que o primeiro passo para essa salvação foi dado por Deus em Cristo. Portanto é importante ao católico atentar aos mandamentos vindos da tradição e de sua liderança eclesiástica, o papa, já que este é o representante de Cristo na terra.

A Bíblia passa a ser a autoridade máxima do protestante, que alega ser dali que é possível encontrar a salvação. A tradição cristã fica em segundo plano na soteriologia cristã protestante servindo apenas de testemunho dos fiéis. O repúdio às imagens de escultura nasce em países calvinistas17 enquanto que o repúdio às indulgências nasce no meio luterano.18

Pontos de vista arminianos, que pregam que a salvação do ser humano depende de sua escolha, e calvinistas, que acreditam que a salvação depende exclusivamente de Deus, entram em choque para discutirem como se dá a salvação do ser humano.19 Mas nunca se nega a importância da fé na salvação. Essa é a marca do protestantismo: a fé.

Concluindo, esse rápido resumo da história do cristianismo serviu para mostrar que assim como o termo "religião" sofreu mudanças em sua compreensão através da história assim também o foi com a soteriologia do cristianismo: esta se desenvolveu progressivamente dando respostas à sua época, respostas estas que nem sempre se coadunaram na história.
Para ler a PARTE 1/3 clique aqui.
Para ler a PARTE 3/3 clique aqui.

Este artigo é uma adaptação da minha monografia, a qual foi apresentada como exigência do curso de teologia da FATE-BH em 2008. Caso queira lê-la integral e gratuitamente baixe-a clicando aqui.


Referências das Citações:

1- Cf. TILLICH, 1967, p. 17-22.
2- Cf. GAARDER, 2000, p. 155 e TILLICH, 1967, p. 22, 28.
3- Cf. TILLICH, 1967, p. 28-32 e GAARDER, 2000, p. 156-157.
4- Cf. BERKHOF, 1992, p. 183 e McGRATH, 2005, p. 466.
5- Cf. BERKHOF, 1992, p. 184.
6-  Cf. TILLICH, 1967, p. 133.
7- Cf. TILLICH, 1967, p. 137 e CAIRNS 2005, 99-101.
8- Cf. TILLICH, 1967, p. 134-138.
9- Ibidem, p. 134-138.
10- Ibidem, p. 142-144.
11- Cf. TILLICH, 1967, p.152-170; BERKHOF, 1992, p.200; GAARDER, 2000, p. 185.
12- Cf. TILLICH, 1967, p. 150; GAARDER, 2000, p. 173, 185-188.
13-  Cf. TILLICH, 1967, p. 193; BERKHOF, 1992, p. 190-192.
14- Cf. CAIRNS, 2005, p. 221-224.
15- Cf. KÜNG, 1976, p. 79.
16- Cf. CNBB, 2007, p. 161.
17- Cf. TILLICH, 1967, p.240-241. Ver também CAIRNS, 2005, p.244-245.
18- Cf. LUTERO, 2006, p.121-131.
19- Cf. BERKHOF, 1992, p.195-199.

BIBLIOGRAFIA:

BERKHOF, Louis. A história das doutrinas cristãs. São Paulo: Editora PES, 1992.

CAIRNS, Earle. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Sou Católico: vivo minha fé. Brasília: Edições CNBB, 2007.

GAARDER, Jonstein; NOTAKER, Henry; HELLERN, Victor. O livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

KÜNG, Hans. Ser Cristão. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

LUTERO, Martinho. O cativeiro babilônico da Igreja. São Paulo: Martin Claret, 2006.

TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. São Paulo: ASTE, 1967.

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