quarta-feira, 17 de março de 2010

A formação dos escritos do Antigo Testamento: A Obra Histórica Eloísta

Elaborado por: Súsie Helena Ribeiro e Dalton Said Henriques

O javista foi o primeiro a colocar por escrito um esboço do Pentateuco. Mas não ficou aí a exposição da história primitiva de Israel. A obra foi completada por outra redação, a eloísta, tão bem amalgamada com a javista que se chegou a falar de uma “iehovista” J/E. A partir da história de José e principalmente do Êxodo torna-se difícil delimitar as fontes.

1. INDEPENDÊNCIA

Dada essa dificuldade, o eloísta tem sido tema de debate, com respeito a seus limites, e até mesmo quanto a sua existência. Contudo, há diversas razões que parecem justificar a consideração do eloísta como relator independente:

Existe uma série de duplicação do mesmo material, especialmente as passagens sobre a tentação de Eva (Gn 20 E; 12.10ss J.26.7ss J) e da fuga de Hagar (21.9ss E; 16.1ss J).
Há relatos paralelos onde se mesclam as relações javista e eloístas. Os exemplos principais são o sonho de Jacó (Gn 28.10ss) , a vocação de Moisés (Ex 3), a teofania do Sinai (Ex 19.16ss) e a perícope de Balaão (Nm 22-24 ).

Nesses textos principais da divisão das fontes coincide com um critério decisivo: o emprego do nome de Deus “Elohim” em lugar de “Javé”. Existem ainda outros argumentos secundários:
A obra histórica eloísta se caracteriza às vezes por certas peculiaridades estilísticas e até, em menor medida, pelo uso de determinadas expressões. Por exemplo: a forma de Deus chamar certas pessoas e sua resposta (“Fulano, fulano: eis-me aqui!”, com certas variantes); a expressão, em textos soltos, “Sou eu Deus?” (Gn 30.2; 50.19); o Moisés “Tirou o povo” (Ex 3. 10,12; 19.17). Em vez de usar o topônimo “Sinai”, o eloísta prefere “Monte de Deus” (Ex 3.1b). São ainda típicos os usos dos nomes “Jetro”, dado ao sogro de Moisés, e do título de “Faraó”, em vez de “Rei do Egito”.

Às vezes, certas reflexões constituem olhadas retrospectivas e antecipatórias da ação ou do evento, ligando o passado ao futuro. Assim a conclusão do relato de José em Gn 50.20 (preparado em 45. 5,7) interpreta a posteriori o destino de José e se projeta mentalmente à seguinte perícope (Ex 1.15ss), onde o propósito de Deus de preservar seu povo com vida se manifesta através das parteiras. Há, portanto, uma independência temática objetiva entre diversas unidades textuais. Com efeito, Gn 50.20 parece possuir uma função articuladora dentro de uma exposição eloísta. As palavras de José põem fim à história familiar da época patriarcal e se introduzem na história do povo israelita.

Certas peculiaridades nas afirmações éticas e teológicas só se podem compreender como conseqüência daquelas reflexões. Vejamos três exemplos que ilustrem a delicadeza do caráter ético do eloísta: enquanto que o javista descreve a Abraão proferindo uma mentira oficiosa, dizendo que sua mulher sara é sua irmã (Gn 20:11ss; cf. 26.7ss), o eloísta, para não manchar a imagem do patriarca com uma mentira, apresentação a como sua meio irmã e enfatiza expressamente a verdade dessa circunstância (Gn20. 2,5,12). José segundo relato javista, é vendido aos ismaelitas (Gn 37.27,28b), mas segundo o eloísta ele é deixado “simplesmente” numa cisterna e ali é retido por algum tempo, até que alguns comerciantes medianitas o encontram e o levam consigo (Gn 3.22-24,28a,29). Segundo Gn 16.6 J, Abraão despede a Hagar por sugestão de Sara; segundo Gn21.11ss E, ele o faz por ordem divina, e lhe concede uma provisão de víveres. Entre as peculiaridades teológicas inclui-se o amplo tema do amor a Deus.

Razões diversas contribuem para que se possa afirmar a independência original do eloísta. De qualquer forma, só existem fragmentos soltos dessa fonte escrita, já que o redator que unificou J e E só aproveitou a obra eloísta como complemento a obra javista, que tomou por base.

2. EXTENSÃO

Apesar desse processo desfavorável para E (que acabamos de mencionar), foram conservados alguns relatos completos dessa obra histórica. O conjunto mais extenso, onde melhor se observa o seu estilo de trabalho, é Gn 20-22. Mas incerto o ponto inicial. Nada do E aparece em Gn 12-19, exceto, talvez, alguns traços duvidosos em Gn 15. De qualquer forma, seu verdadeiro começo não foi conservado, em contraste com a introdução solene do escrito sacerdotal em Gn 1 e do javista em Gn 2.4bs. Teria ele começado com a história de Abraão? Nenhum traço do eloísta foi encontrado ainda em Gn 1-11. Sendo assim, ele não inclui uma história primitiva, mas começa com a era dos patriarcas.

Não existe unanimidade sobre o final da obra eloísta. Alguns o situam em José 24, outros em Dt 31ss. Costuma-se identificar o último texto eloísta de envergadura na perícope de Balaão (Nm 22ss). Entre os textos atribuídos com mais ou menos certeza a E se encontram os seguintes:

  • Gênesis 15: vocação de Abraão.
  • Gênesis 20.1-22.19: Abraão e Abimeleque, nascimento de Isaque, expulsão de Hagar e sacrifício de Isaque.
  • Gênesis 28.11,17-20s: o sonho de Jacó sobre escada do céu, partes de Gn 30-33; 35 (especialmente os versos 1-5,7-); 37.40-42 (na maior parte); 47.
  • Gênesis 46.1b-5ª: revelação a Jacó.
  • Gênesis 45.5b-15; 50.15-26: perdão de José.
  • Êxodo 1.15s: desobediência das parteiras. Talvez também 2.1-10.
  • Êxodo 3.s: vocação de Moisés (mais exatamente 3.1b, 6,9-14).
  • Êxodo 14: o milagre do mar vermelho (especialmente 13.17-19,14.5a,19a).
  • Êxodo 18: encontro de Moisés com seu sogro: sacrifício comum, instituição dos juízes.
  • Êxodo 19: revelação do Sinai (especialmente 19.seu,19; também 24.9-11).
  • Números 22: Balaão.

É possível que alguns textos, entre eles Êxodo 20.18-201 e as partes de Êxodo 32, sejam acréscimos no estilo eloísta ou deuteronômico. É muito importante, para determinar a teologia do eloísta, saber se certos textos, como Gn 15.6; Ex 32; Nm 12.6s ou inclusive o decálogo e o código da aliança (Ex 20-23), pertencem ou não a eloísta. Para emitir um juízo seguro, é preferível delimitar um mínimo de textos seguros.

3. SITUAÇÃO

Há bastante unanimidade acerca do lugar e tempo de origem do escrito eloísta. O lugar, segundo indícios, é o reino do norte, Israel. Na história patriarcal faltam as narrações concernentes ao sul, oferecidas pelo javista; por exemplo, o ciclo das histórias de Abraão e Ló. Tampouco é Judá o porta-voz na história de José, como em J, mas Rubem, segundo um estágio tradicional anterior (Gn 37.22-24,29s e com 37. 21,26s J). Parece haver certas relações da obra eloísta com os profetas do norte, talvez com Elias, mais claramente com Oséias (Ex 3.14 com Os 1.9; também Ex3.10s com Os 12.14) e com o Deuteronômio, cujas tradições mais antigas vêm aparentemente do norte.

Quanto à data, a opinião comum é que ela se encontra entre divisão do Reino, em 926 a.C., e o surgimento do profeta Oséias, ou seja, antes do perigo assírio o, que o eloísta não parece conhecer ainda. A data, portanto, fica ao redor de 800 a.C. Nesse marco histórico-temporal encaixa-se bem a situação cultural. Tanto o escrito eloísta quanto à mensagem de Oséias chegaram ao sul depois da destruição do reino setentrional em 722 a.C. Ali, talvez em Jerusalém, E foi unificado com J. As diferenças e as semelhanças entre J e E se explicam pelo relacionamento original existente entre eles através da tradição oral.

4. INTENÇÕES TEOLÓGICAS

O fato de que o eloísta não contenha uma história das origens e implica na ausência da orientação universal do javista. Javé não está atuando desde a criação do mundo. Ele se revela somente a vocação de Moisés (Ex 3). O eloísta se ocupa exclusivamente do povo de Israel de sua missão particular, o que se confirma pelas palavras de Balaão: “É um povo que eu tinha separado, e não se encontra entre as nações” (Nm 23.9). Esta frase contém um testemunho antigo de autoconsciência de Israel. Não se pode dizer que o eloísta seja particularista, pois ele demonstra, na verdade, tendências contrárias.

4.1- O uso do nome Elohim

Como é possível que E use normalmente, em lugar do nome próprio “Javé”, o termo geral “Elohim”, com ou sem artigo, sem especificação de significado? E isto no reino setentrional, ao redor de 800 a.C., numa situação em que, em sintonia com os episódios de Elias e a pregação de Oséias, se deu um duro enfrentamento entre Javé e Baal. Não é fácil produzir uma explicação satisfatória para o fato de que essa fonte evita o nome específico do Deus de Israel. A razão mais provável para uso do termo “Elohim” é a intenção de enfatizar a transcendência de Deus e indiretamente um certo universalismo da própria fé: Javé, o Deus de um povo, é Deus pura e simplesmente. No confronto entre Baal e Javé, nos dias de Elias, a idéia básica ficou em evidência: “Só Javé é Elohim” (1 Rs 18.29).

4.2- A transcendência de Deus.

O eloísta tem uma surpreendente tendência a destacar a transcendência de Deus. Ele não inclui certos relatos sobre encontros diretos entre Deus e o homem (como os de Gn 3.18.s J). Deus guarda distância: ele “fala” com Abraão (Gn 22.1) sem se fazer referência a uma verdadeira aparição, ou “Chama” a Moisés (Ex 3.4b) como alguém que está longe, sem se precisar de onde vem a chamada. Deus parece habitar no céu quando, nos relatos dos patriarcas, envia de lá seus mensageiros à terra ou estes lhe dirigem a palavra. Deus se faz representar por seu mensageiro no plano do mundo visível, e assim não se faz acessível diretamente (Gn28.12 E com 28.13 J). A realidade divina tampouco se pode “objetivar”, quando Deus, no período pré-mosaico, aparece em de sonhos (Gn20.3s; 28.12; etc). Ambos modos de revelação, mediante mensageiros e sonhos, podem ser combinados (3.11; 28.12). Deste modo, os sonhos não possuem um peso específico próprio, mas são utilizados com uma intenção teológica e quase como um recurso literário para permitir a Deus falar. O decisivo não é a visão, mas as palavras (Gn20.3, 6; etc). O relato da vocação de Moisés é quase exclusivamente um diálogo. Também na atividade de Moisés aflora a intenção do eloísta: enquanto que para J a libertação do Egito é façanha de Javé, para E é o próprio Moisés que tira o povo do Egito, a fim de evitar um contato direto entre Deus e o homem (3.10,12; cf. 19.17). Deste modo, observa-se no eloísta maior capacidade de reflexão teológica do que no javista.

4.3- Fidelidade e temor a Deus.

O eloísta denota de modo mais direto, em seus conceitos, uma intenção teológica. Um tema que se repete nas mais diversas narrações é a prova de fidelidade a Deus a que o homem é submetido. O tema da tentação, já presente em Gn 20.11, é acolhido e desenvolvido no relato do sacrifício de Isaque com outra orientação. Essa lenda cúltica de origem pré-israelita sobre a substituição do sacrifício de crianças por um sacrifício animal (v.22) é interpretada pelo eloísta como uma prova de fé: “Deus provou Abraão” (v.1); este, temente a Deus, está disposto a devolver a seu dono o dom prometido e concedido, e a confiar em sua assistência sem reservas. Foi também por temor a Deus que as parteiras recusaram obedecer à ordem desumana de Faraó, de matar os meninos israelitas recém-nascidos, e realizam, deste modo, sem saber, os desígnios de Deus de “manter com vida um grande povo” (Gn 50.20).

Pratica-se o temor a Deus de modo diferente nas distintas situações: na obediência do crente (22.12), o abandono à sua palavra (42.18; Ex 18.21), ou protegendo o desamparado, seja estrangeiro (Gn 20.11) ou o recém-nascido (Ex 1.17, 21; cf. 20.20). O temor a Deus implica a religião e a ética, a fé em Deus e o comportamento para com o semelhante em uma união indissolúvel.

A exposição eloísta talvez aspirasse à exemplaridade apelando ao temor a Deus na polêmica de Israel com a religião Cananéia. Nesse caso, pareceria mais lógico apelar ao “Temor a Javé” em vez de ao “temor a Deus” em geral. É possível que decorrentes sapiencial familiarizou ao eloísta com a expressão "temor a Deus". Uma sentença como o "temor de Deus aparta o mal" (Pv 16.6) parece expressar diretamente a intenção dos relatos eloístas. O eloísta poderia estar assumindo a tradição sapiencial junto com a profética, antecipando a combinação posterior da profecia com a sabedoria.

Para ler sobre a Obra Histórica Javista clique aqui.
Para ler sobre os Escritos Sacerdotais clique aqui.
Para ler sobre a Obra Histórica Deuteronomista PARTE 1/2 clique aqui
Para ler sobre a Obra Histórica Deuteronomista PARTE 2/2 clique aqui.
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2 comentários:

  1. Queridos Susie e Dalton!
    Não obstante haver uma tendência generalizada na escola de pensamento liberal e modernista, a qual adota as linhas de pensamento adeptas a teoria eloísta (etc...), não há razões (exceto as da critica da forma) para defender-se diferentes redações do texto bíblico. A tese, antitese e sintese do texto exclui a mão de Deus do trabalho de redação da Bíblia. Para mim, adepto a ortodoxia, não há elementos para tal afirmação e divisão do texto biblico em etapas, teses, contrateses e sintese.
    Não estou criticando o ponto de vista defendido por voces, mas demonstrando a minha opinião embasada no estudo tecnico-gramatical do texto.

    Deus lhes abençõe!

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  2. Prezado Taiso;

    Não acredito que adotar a compreensão da formação dos textos bíblicos, segundo o que é dito pelas críticas das formas, como mencionado acima, anula a ação criadora de Deus. Ao contrário. Ao invés de se ver um Deus que escreve textos que, muitas das vezes se demonstra confuso, Ele se mostra como Aquele que participa da história da salvação e se deixa ser percebido e comentado, segundo a visão humana e não divina.

    Foi nessas teorias que encontrei maior possibilidade de se crer num Deus que não entra em contradições devido a escrita bíblica ser truncada e cheia de dedos humanos. A crítica das formas se mostra mais coerente para mim.

    E obrigado por suas colocações. São por demais pertinentes.

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